Uma coisa é estar frio, ok tudo bem, uma pessoa aceita, prepara-se e mentaliza-se para isso. Outra coisa bem diferente é este calor esquisito que chegou na semana passada a menos 8º graus embrulhado numa "normal" frente fria aqui por terras da África do Sul. Não é gralha de texto, vou repetir: a noite de quarta para quinta-feira passada registou durante a noite em Magaliesburg menos 8º graus celsius. E -6º na noite seguinte. Parecendo que não, quando deixamos de sentir os pés, ou a cabeça lateja com o frio que o vento traz, toda a linha de pensamento é violentada pela temperatura: "já tens a câmara?" "Já e o cachecol e o gorro também"; "Temos de editar a reportagem de amanhã" "É melhor ser no quarto do Jorge, porque ele tem aquecedor"; "e se formos fazer uma reportagem com as mulheres do Mundial" "É uma boa ideia, mas não estarão de gola alta? "Vamos almoçar agora ou esperamos que passe o frio?" "É melhor ir já porque eu tenho coisas combinadas para Setembro!!!". As últimas duas noites em Magaliesburg já foram munidas de cobertores eléctricos em cada cama, três cobertores, dois aquecedores em cada quarto, café quente e picante ao jantar.
E agora, quando isto estava a ficar quentinho, é que vamos para a Cidade do Cabo, onde à nossa chegada estão 20º graus e uma cidade com uma vida fantástica. Para trás ficou a barbearia a céu aberto num terreno baldio na estrada principal de Magaliesburg, onde um jovem utiliza uma bateria de um carro para ligar uma máquina de cortar o cabelo e com a qual trata do visual dos habitantes desta localidade; para trás ficam também os vermelhos intermitentes, sim aqui há semáforos em que o sinal vermelho pisca e é uma espécie de salve-se quem puder e pelos quais também passamos para chegar ao principal estádio de Joanesburgo.
Conseguimos entrar duas vezes no Soccer City, uma no jogo de abertura e outra no Argentina-Coreia do Sul, nos quais beneficiámos sempre da – chamemos-lhe assim – simpatia dos sul-africanos. Bom, vividas e gozadas devidamente cada uma destas histórias, chegamos à Cidade do Cabo, que me fez lembrar o Rio de Janeiro no primeiro instante. É decerto pela imponência das montanhas que vivem lado a lado com os Ferrari, Aston Martin, com as grandes marcas mundiais e provavelmente as mulheres mais bonitas da África do Sul. O estádio é erguido à beira mar e confere mais certezas a quem a elegeu como a cidade mais bonita do Mundo. Na marina, onde se montou um ecrã gigante numa mini arena que junta os fãs de várias selecções, há grupos de danças africanas, arte de rua, há artesanato de muito bom gosto, flashes dos turistas, vozes de caras pintadas de várias nações que transformam este espaço de luxo e requinte numa babilónia dos tempos modernos. Esta é com toda a certeza uma outra África do Sul, que tendo um estilo de vida parecido, noutra dimensão, ao que vi em Los Angeles – e isso reflecte-se nas pessoas, na forma como vestem e como socializam, mas também no parque automóvel, nos aromas das ruas com sorrisos de gente, na limpeza dos passeios e no imenso verde que pinta toda a cidade em cumplicidade com o azul Oceano.
Mas tudo isto se reduz a secundário se comparado à Table Mountain "Montanha da Mesa", principal ponto turístico da Cidade do Cabo. A mais de 1000 metros de altitude, com as nuvens abaixo dos nossos pés e com cenários de cortar a respiração. As imagens não carecem de ser acompanhadas de palavras, tal é o impacto das mesmas seja qual for a direcção a que se atente.
Seja aqui, por onde Vasco da Gama dobrou e seguiu no caminho marítimo para a Índia ou em qualquer outro local onde estivemos encontramos pelo menos uma bandeira portuguesa, colocada na maioria dos casos, diga-se, por ocasião deste Mundial. Mas não deixa de ser reconfortante e até emocionante andar pelo Soweto, bairro histórico na época do apartheid por ser o principal núcleo de resistência anti-racista e encontrar casas com bandeiras das cinco quinas, desfraldadas ao vento, como que a agitar o orgulho português. Ou saber que um dos empregados de um dos hotéis onde estão jornalistas portugueses comprou um dicionário inglês-português e está a aprender palavras e expressões que lhe servirão talvez só para este mês, mas que ele faz questão de exibir com sincera deferência, como que incondicionalmente agradecido por termos levado, nós os portugueses, selecção e os jornalistas que andam nas ruas, um pouco de vida e com isso de luz e esperança a vidas com limites no horizonte dos sonhos e das vontades, com uma capacidade de entendimento inferior à dimensão global do que aqui acontece. Talvez daqui a um mês, a um ano ou a 20 não tenha ficado mais nada na lembrança destas pessoas humildes, espantadas e espantosas do que aquela presença agitada e curiosa de um grupo de europeus inadaptados, mas que no final de tudo souberam sempre dizer: Obrigado. Siyabonga, em zulu!