A maior parte das equipas já regressou a casa, mais de 90% dos jogadores já está de volta aos países de origem ou de trabalho, há adeptos que já guardaram as decepções na gaveta que só se abre de 4 em 4 anos e também nós, pessoas que contam o que vêm, já apenas contamos o que vimos. Verbo no passado. E o que vimos é necessariamente mais do que aquilo que mostrámos. Porque é sempre assim quando o Mundo acontece à nossa frente. É assim quando somos um ou dois dos 400 milhões de pessoas em todo o Planeta que estão a ver a abertura do primeiro Campeonato do Mundo de Futebol, com a pequena diferença de que o estamos a viver e sentir no local.
Não deixa de ser dessa forma quando lutámos e honrámos o privilégio de ter o nome inscrito nos profissionais de comunicação inscritos para deixar a história escrita para quem vier depois. Vai ter de ser assim na nossa memória individual quando se falar de Anderson Luiz de Sous "Deco". Foi um dos mais geniais futebolistas a vestir a camisola da selecção portuguesa e despediu-se d’ A Portuguesa" no jogo da passada semana com a Espanha. O que para mim ficou desse jogo, para além do golo de Villa, foi a hora que se lhe seguiu com a passagem dos jogadores pela zona mista, onde habitualmente prestam declarações à imprensa, rigorosamente dividida (escrita, rádios e televisões) e que fechou precisamente com Deco, como se tivesse vindo ele fechar a porta deste Mundial. Quando chegou junto de nós, deitou uma das duas malas, abriu-a de seguida, retirando de lá a camisola com que se despediu para sempre da Selecção Portuguesa. Guardei-a como quem guarda um tesouro raro, único até. Faço o mesmo com as memórias, devidamente guardadas sim, mas polidas, brilhantes, vivas.
Este Mundial vai permitir que os que o viveram voltem lá mais vezes do que os dias que lá estiveram; o entusiasmo genuíno dos sul africanos ao notarem que tanta gente tão diferente que chegou de tão longe se interessasse pelos locais que para eles já são banais, que lhes queiram perguntar coisas e saber o que pensam. O último taxista que me guiou explicou-me as sombras iluminadas pela força do Mundial: "estarmos aqui os dois neste táxi – disse-me – e eu negro e você branco aqui ao meu lado e sobretudo a falar comigo é algo que não acontecia". E acrescentou: "o país evoluiu neste último mês o que demoraria a evoluir em 20 anos normais" e ele falava, obviamente, na questão das mentalidades. Mentalidades essas que se tentam ainda hoje moldar a um modus vivendi sem fantasmas raciais, mas que são difíceis de apagar. "Se construirmos um muro entre dois grupos – explicou-nos um guia na prisão de Robben Island – a tentação é a de que elementos dos dois grupos contornem, partam ou tentem saltar o muro, mas se a divisão desses dois grupos for educacional, com ideias pré concebidas, os brancos quando vêem um negro vêem um ladrão e os negros quando vêem um branco estão a ver um racista. Quando perguntamos a elementos desses dois grupos porque não gostam do outro, a maior parte não sabe responder, a não ser recorrendo às bases formativas que lhes foram passadas geracionalmente", rematou, "o Mundial mudou tudo isto, não somos pretos ou brancos ou indianos, somos SUL AFRICANOS".
A prisão de que falei, foi onde Nelson Mandela esteve 18 anos preso (ao todo foram 27 anos detido), numa cela com 5 metros quadrados, com uma pequena janela com vista para um pátio de muros altos de tijolo e cimento. Mandela andou por aqui, esteve aqui, pensei eu naquelas horas que lá passamos, viu isto que estamos a ver, foi aqui neste cela onde agora estamos que ele acedeu ao pedido de um colega para escolher a passagem preferida das obras de Shakespeare, elegeu "Julio César": "Os cobardes morrem muitas vezes antes da sua morte; os valentes não sentem a morte senão uma vez."
A viagem de regresso a Lisboa fez-se, tal como na ida, no avião da selecção portuguesa, que já não tinha lugares livres para as saudades, mas que factores desportivos à parte mostrava sorrisos e ansiedade de pisar solo português. Eu, ainda troquei de lugar com o Jorge, o que me permitiu ter 3 lugares para me esticar, mas mesmo quando estava a chegar aquele sono malandro começo a ouvir: "A DORMIR A ESTA HORA?!" Era o Miguel Veloso, um dos Incríveis, que acabou por fazer parte da viagem junto de nós numa conversa à qual também se juntaria o Miguel e uma dose de boas histórias. Mas essas já não são para contar.