Gosto de pessoas apaixonadas pelo mundo, com interesses vários, capazes de saltar de conversa em conversa com o mesmo prazer. Isso não significa que aprecie a confusão e, sobretudo, a sobreposição de coisas que não têm nada a ver umas com as outras. Primeiro, há o risco da generalização, um dos meus piores inimigos. Depois, o mais desonesto: pessoas que, de tanto quererem apregoar-se muito justas, acabam por cometer a injustiça mais fácil, a de misturar alhos com bugalhos. Vem isto a propósito da proeza mais espantosa que me foi dado ver no meu tempo de vida, até agora. O salvamento bem-sucedido de 12 rapazes e um homem que esperavam a morte no fundo de uma gruta inundada. Semelhante a isto só mesmo a espantosa história dos 33 mineiros do Chile. E ainda assim há diferenças, no Chile estavam homens experientes, profissionais das minas, na Tailândia miúdos indefesos, turistas de ocasião, apanhados na inconsciência de um adulto que os terá guiado sem pensar bem no que fazia. O que foi acontecendo foi uma história que, contada num livro de ficção, poucos acreditariam. Foi uma espécie de argumento cinematográfico de alta tensão. Calculo que todos sofremos duas semanas de nervos e falta de ar. As hipóteses de salvamento, quando nos eram explicadas, pareciam saídas de um filme de terror e de certeza que todos pensámos que tinha tudo para correr muito mal. Foi o que foi: um espantoso episódio de superação humana a que todos assistimos em tempo e comoção reais. Foi um alívio extraordinário, uma ocasião para, de lágrimas nos olhos, louvarmos a inacreditável coragem daqueles mergulhadores. Deveríamos dar graças e gozar o momento. Mas eis que, como sempre, entram em campo os “justiceiros”. Não tardou muito para surgirem as primeiras sentenças do género “pois é tudo muito bonito mas pelas crianças que morrem à fome em África e pelos miúdos separados dos pais na fronteira de Trump ninguém faz nada”… É realmente espantosa, a capacidade de alguns humanos (muitos mais do que seria desejável) de tentarem conspurcar e minimizar um feito maravilhoso com a sua suposta superioridade moral. Esta gente que, a propósito de tudo e de nada, procura arrumar qualquer conversa com a fome em África, que faz ela, por seu lado, para combater o problema? Na sua esmagadora maioria, nada de nada, comenta, sente-se bem, com a sua consciência e segue em frente. Não quero com isto minimizar a fome em África, bem pelo contrário. É uma das maiores dores do mundo e tomara que pudesse ser resolvida com umas dezenas de mergulhadores. Sabemos que o problema é de outra dimensão, absolutamente catastrófica. O que não se pode é jogar essa cartada a propósito de tudo e nada. É desonesto, é injusto, e ainda por cima tem o condão infeliz de tornar quase insignificante o que foi, repito, uma superação do espírito humano, que nos chegou pela demonstração física impressionante, mas sobretudo pela força de alma que é necessário ter para acreditar, nunca desistir, e apenas em nome de salvar outros humanos. Essa foi a lição, e foi tão importante nesta altura de descrença que nos varre a todos. Ver aqueles homens arriscar a vida porque não podiam assistir de braços cruzados a uma morte anunciada, isso faz-nos, ou deveria fazer-nos, voltar a ter fé na humanidade, que tão precisada dela andamos.
Rodrigo Guedes de Carvalho: Um assomo de fé
O salvamento de 12 rapazes e um homem que esperavam a morte no fundo de uma gruta foi a proeza mais espantosa que me foi dado ver no meu tempo de vida.