Se na semana passada falei de Sócrates, e da sua indisfarçável animosidade com quem o afronta, não posso esquecer Carlos Queiroz. Não nos bastava ter um primeiro-ministro eternamente zangado, a responder com duas pedras na mão, surge agora uma nova faceta do seleccionador tido por calmo e apaziguador. Queiroz mereceu, inclusivamente, algumas críticas a um certo excesso de placidez, o que faria com que faltasse nas equipas que vai treinando a dose certa de sadia agressividade, essencial para nos tornarmos mais fortes em campo, apostados em ser melhores que o adversário: aquilo a que na gíria desportiva se chama o "killer instinct". O que se passou no aeroporto de Lisboa é, por isso, tão inesperado quanto grave. Bem sei que o agredido, Jorge Baptista, acabou depois por desdramtizar e anunciou logo que não apresentaria queixa contra Queiroz, e que o próprio responsável máximo pela Federação classificou o episódio como uma questão "privada" na qual não tinha de se meter…mas não sejamos tão ingénuos ou desligados ao ponto de sorrir perante tão deplorável arruaça. Por outras palavras: Queiroz não pode perder a cabeça desta forma, sobretudo quando veste inequivocamente a pele de seleccionador: era nessa condição que se preparava para embarcar para a Polónia. E não pode, acima de tudo, fazer exactamente o oposto que se espera de um líder, aquele que, por natureza e legitimidade, deve dar o exemplo. Já seria grave em qualquer circunstância mais "desculpável" ( e seria difícil encontrar uma que se enquadrasse na categoria), mas é particularmente alarmante quando se sabe, e nem Queiroz desmente, que o que causou a fúria foi uma sucessão mal engolida de críticas de Baptista ao trabalho do seleccionador. Desculpar-me-ão, mas acho que já chega de intimidação numa sociedade dita democrática. Temos o tom irado de ameaças veladas do primeiro-ministro, agora temos as vias de facto do líder de uma paixão nacional. Desatar à bofetada a quem o critica vai dar trabalho a Queiroz, ou a quem pense, como ele, que resolverá as coisas assim. E vai demonstrar a um país inteiro que tipo de personalidade têm as pessoas que deveríamos admirar e respeitar. O país está a caminhar a passos largos para um sufoco de receio colectivo, a começar por jornalistas, que não tarda nada começarão (nos casos dos mais influenciáveis) a optarem desde logo por uma autêntica auto-censura, para evitarem chatices. Ainda por cima, o futebol português deveria, de uma vez por todas, de parar de dar maus exemplos. Já tivemos um jogador a agredir um seleccionador (Sá Pinto e Artur Jorge), recentemente o mesmo Sá Pinto , na pele de dirigente, desatou ao soco a Liedson em pleno balneário, já tivemos um jogador a agredir um árbitro num Mundial (João Pinto na Coreia, em 2002), já vimos um seleccioandor (Scolari) dar um sopapo num jogador adversário num jogo de apuramento…e agora o tranquilo e fleumático Queiroz, em plena sala VIP de um aeroporto, mostra como se responde a críticas negativas. E depois ainda fica tudo muito chocado com as sequências crescentes de pancadaria nos túneis de vários estádios, que metem jogadores, dirigentes, seguranças e quem lá estiver…Valha-nos Deus. O mais irónico é descobrir que ainda há comentadores e jornalistas que parecem não conhecer o próprio país. Aqueles que, quando chegam imagens de pancadaria num qualquer jogo sul-americano, dão uma de reprovação condescendente, e dizem que eles por lá são uns indisciplinados violentos…
Capas
|A Fúria do Senhor Tranquilo
É certo que o agredido acabou por desdramatizar mas Carlos Queiroz não pode perdes a cabeça desta forma