1 – Apesar de tudo, o governo conseguiu uma proeza que não merece. Uma grande maioria de portugueses considera compreensível que se aperte o cinto, mais uma vez. Talvez não seja justo, dirão muitos, mas compreensível. É a isto que Sócrates se agarra, e volta a atirar-nos os exemplos da Grécia, da Espanha, da Irlanda. Todos os que possam ajudar a explicar, dentro de portas, que não podemos fechar os olhos e os bolsos à convulsão que vai por esse mundo fora. Sendo impossível sobrevivermos numa bolha serena, alheia ao tumulto do mundo em mudança, teremos então de ser compreensivos. Mas há, ou deveria haver, limites para a compreensão. Ou, pelo menos, se a coisa é tão feia e tão urgente, torná-la mais compreensível. Compreendemos todos que o Estado precisa urgentemente de mais receita, e para pilhagem imediata nada melhor e mais eficaz que os nossos pobres impostos (entenda-se por "nossos", os que declaramos o que ganhamos de facto…). Depois, ainda na receita imediata, os impostos indirectos que haveremos todos de pagar, o IVA e outras taxas sobre produtos que, mais tarde ou mais cedo, havemos de consumir. O que já se me torna menos compreensível, se há uma pressa de arranjar dinheiro, é a lentidão com que (eventualmente) se irá buscar dinheiro da outra forma clássica: a poupar, ou a cortar na despesa, como terá de fazer qualquer família. Aqui, o governo já vai com mais cuidadinho, e pouco fará para terminar com o pagode indecoroso que são anos e anos de criação de tachos, com os institutos, fundações, assessorias ou simples pedidos de pareceres. Qualquer investigação primária permitirá demonstrar que há uma rede de interesses tão vasta e ramificada que, naturalmente, não interessa mexer, porque as pontas se seguram todas umas às outras. Dito de outra forma, os portugueses poderão compreender um apelo nacional ao sacrifício, mas dificilmente compreenderão que não se mexa na teia de "jobs for the boys" de sucessivos governos. Está visto que o nosso problema dito económico tem uma raiz moral. Basta pensar no oposto, os países nórdicos, onde os políticos procuram a carreira animados por um verdadeiro sentido de missão. Por cá? A política, e as teias que permite criar, são muitas vezes um atractivo para se tratar da "vidinha", de forma mais rápida e mais eficaz do que qualquer outra profissão. É a grande diferença ética que define a civilização de um povo: os que servem o Poder, e os que se servem do Poder. O resto são números, os números que resultam da lógica do compadrio e da exaltação da incompetência. E são esses números que agora, mais uma vez, nos esmagam a capacidade sobrevivência, e vão deixar na miséria irreparável milhares de compatriotas.
2- Pequeno exemplo que nos leva a duvidar de um Orçamento de choque como este: lá se anuncia que o governo até faz um corte grande na indemnização compensatória à RTP. Caramba, um acto de coragem, que mostra que a crise tem mesmo de chegar a todos, finalmente, grande sentido de ética financeira. Parece, não é? Mas não. Simplesmente o governo deixa de pagar à RTP para que você e eu paguemos. A mesma exacta quantia que é retirada ao gigante público às claras, há-de chegar-lhe, até ao último cêntimo, disfarçada na taxa audiovisual que o governo acaba de aumentar, e que pagamos todos na factura da electricidade. Resultado: não vai por um lado, vai pelo outro, com a particularidade de sermos todos nós a pagar, mais uma vez. E muitas outras, que ainda se virão a descobrir. Eu não me importo de fazer sacrifícios, ao lado de todos os meus compatriotas honestos que pagam impostos e que não aldrabam ninguém. Não me peçam é para compreender que me peçam sacrifícios para eternizar o poder de quem não o merece.