Um poeta disse um dia que Portugal não é bem um país, mas sim um sítio mal frequentado. Tenho-me lembrado bastante desta frase, nos últimos tempos. Quando ouço os nossos governantes anunciarem as medidas de choque para enfrentar a crise, pedindo a nossa compreensão e solidariedade, para logo depois, em voz mais baixinha, enunciarem uma série de excepções, que não pretendem mais do que salvaguardar, no meio do naufrágio colectivo, que alguns mantenham as bóias de salvação dos seu privilégios. Assim que se anunciaram cortes nos ordenados da função pública, logo veio, sussurrado, que algumas empresas não precisariam de o fazer, ou que ficaria ao seu critério. Agora, com o "bom exemplo" vindo de cima, o governo regional dos Açores decide atribuir uma espécie de subsídio-bónus-compensação (chame-lhe o que quiser) precisamente para que os funcionários não sintam o que lhes vai ser tirado. Ou seja, basta fazer as contas, como diria o outro: se sai por um lado e entra pelo outro, fica na mesma. Se fica na mesma, não há poupança. Ser não há poupança, onde está a austeridade? Assistimos, sem surpresa, a uma espécie de justiça para ricos e pobres, na qual Portugal é tão especialista, traduzida neste caso em cortes para quem é amigo ou não. Os partidos de esquerda, sempre tão rápidos na crítica, encolhem-se e preferem atirar ao lado, sob o manto diáfano da histórica defesa dos trabalhadores. Dizem que eles que o problema não são os subsídios de Carlos César, o problema são os cortes anunciados para toda a gente. Talvez. Ninguém diz que não. Mas essa é matéria há muito ultrapassada, e espezinhada, pela famosa conjuntura económica. A tal que manda que se efectuem cortes, sob risco de irmos todos, no mesmo barco, para a miséria absoluta. Ditadas as regras, goste-se delas ou não, haverá que cumpri-las. Ou haveria. Mas há quem faça orelhas moucas para se proteger a si e aos seus. Daí que o grande problema, quer-me parecer mais uma vez, não é tanto a crise económica, mas a crise moral. A crise de valores, que se encosta tantas vezes à verdadeira crise. Porque não basta a auma sociedade, ou a uma civilização, cingir-se ao que está dentro da lei, e muito menos utilizar essa única, grande, e insultuosa defesa. Exemplo? Os dividendos milionários que algumas empresas vão pagar antes que o ano acabe. Ou seja, antes da talhada séria nos impostos que espreita em 2011. É ilegal? Não. É moralmente defensável? Também não. Mas isto nunca chega a ser um dilema em Portugal. Abrigados pela lei, protegidos pelos diplomas e decretos e outra papelada, poucos são os que acham que é tempo de pensar mais na moralidade do que em qualquer outra coisa. É, lamentavelmente, sempre assim. Mas, ao menos, que se assuma, e que não tenhamos de assistir ao triste espectáculo de políticos, com o governo à cabeça, a tentar defender a indefensável falta de decoro. Que este seja um país de espertalhões ( que, se repararmos, estão sempre bem, com crise ou sem crise) é coisa que já não espanta ou indigna ninguém. Mas podiam poupar-nos aos discursos de lamento pelas medidas que têm de ser tomadas e que nos atingem a todos, e que serão difíceis para todos, e aos apelos para que todos dêem as mãos pelo bem comum, ou contra a ameaça comum. Não, a crise, como quase todas elas, não é para todos. É para quem não tem outro remédio senão pagar. Porque os que não pagam continuarão a não fazê-lo, e os que mandam pagar continuarão a abrir portinhas a excepções, sobretudo a quem lhes foi útil no passado, e poderá continuar a sê-lo no futuro. Há uma crise imensa, sim senhor. A maioria de nós sente-a bem na pele e vai continuar a senti-la. Mas acima de nós há um jogo de interesses e coberturas que vai continuar. A quem se pedia apenas o decoro de assumir, e não de procurar atirar-nos areia para os olhos com explicações que envergonham, insultam e humilham. Eu também posso passar por uma velhinha que caiu na rua e não a ajudar. Não há na lei nada que me impeça ou me puna. Mas não seria capaz.
Capas
|Um fartote de pouca-vergonha
Que este seja um país de espertalhões (que, se reparmos, estão sempre bem, com crise ou sem crise) é coisa que já não espanta ou indigna ninguém