Não queria mesmo voltar ao tema, mas tem de ser. O tempo passa, o mistério continua, e vão-se multiplicando declarações e reacções que não consigo deixar passar em claro. É tanta matéria, que nem sei bem por onde começar. Mas como por algum lado terá de ser, vamos à indignação estudantil com o destaque que se foi dando à tragédia do Meco. Foi surgindo sobretudo nas notícias, mas não só: chegou-me até por e-mail, em jeito de resposta à minha crónica da semana passada (mas isso já lá vamos). Nas inúmeras reportagens que se foram acumulando, era natural que os jornalistas procurassem elementos ligados às praxes. Vi e ouvi declarações dos mais variados cantos do País. Primeiro, ficamos a saber que a coisa existe (há mais do que suficientes nojentas imagens e relatos), mas é sempre num sítio distante e com pessoas desconhecidas. Cada universitário que falava dizia que sim, tinha ouvido falar disso, mas isso era noutras faculdades, porque na dele são todos muito respeitadores, e as praxes são engraçadas, e integradoras, e blá-blá. Nada que não se esperasse. Esperei depois ouvir algo que me iluminasse sobre a razão e utilidade das praxes. Um deserto. Dezenas de justificações atrapalhadas, cada uma mais confusa do que a anterior. Mas chamou-me particularmente a atenção um discurso de um dito dux, esse cargo “honorífico” que a maioria de nós desconhecia. Dizia ele que a praxe não só deve continuar como tem um papel “educador” muito importante. E porquê, pergunta naturalmente o jornalista. Não recordo as palavras exactas da resposta, mas o quadro era este: uma grande maioria dos alunos que chega às universidades das maiores cidades é proveniente de famílias com pouco grau de educação, e muitas vezes esses alunos são até o primeiro elemento da família que vai tirar um curso superior. Ora isto (continuando o brilhante raciocínio) dá muitas vezes a estes alunos um peito demasiado inchado, ficam demasiado vaidosos com tal “proeza”, daí que serem praxados lhes ensina uma lição e voltam a ser humildes. De tudo o que já esperava ouvir, esta ultrapassou todas as expectativas. E eu, se estivesse nesta altura a recrutar pessoal para fazer ressurgir um partido fascista, apostava à séria neste jovem. É desta convicção e atenção aos pormenores que o País precisa. Sim, pensando bem, que é lá isso? Então o rapaz ou rapariga chega à faculdade todo contente porque vai estudar a um nível que os pais nunca sonharam? Vamos recebê-lo com carinho, dizer-lhe que pode contar connosco para o que precisar, apreciar a sua força de vontade de não se deixar abater pelas dificuldades dos pais? Claro que não, era só o que faltava. Vamos mas é dar-lhe porrada, mergulhar-lhe a cabeça em bosta de vaca, rapar-lhe o cabelo, fazê-lo rastejar em cima de pedras enquanto nos trata por senhor. Isto, sim, vai ajudar a sua formação e, mais tarde, o País. Isto, sim, fará o orgulho dos pais. E, claro, depois de lhe fazermos tudo isto, deixar bem claro que esperamos que ele faça o mesmo aos que forem chegando mais tarde. Ah, virtuoso ciclo eterno de integração. Deve ser por esta maravilha que os dux (e outros graus hierárquicos que não decorei) se arrastam nas faculdades. Para quê ir trabalhar e produzir alguma coisa quando temos o tempo tão ocupado a organizar novas, surpreendentes e integradoras praxes?
O nojo da praxe – parte 2
Para quê ir trabalhar e produzir alguma coisa quando temos o tempo tão ocupado a organizar novas, surpreendentes e integradoras praxes?