Quem não está comigo…
Sobre o texto em si, percebe-se um misto de amargura e revolta. Mas Paulo Sargento adianta que o manuscrito revela
“alguém que vive a experiência de estar preso a ver as relações entre a política, a Justiça e os média num lugar onde se sente impotente e onde não tem qualquer domínio sobre o desenrolar dos acontecimentos. Os sentimentos de raiva contida à força são visíveis. Frustração e ressentimento seguem de mãos dadas com exasperação e raiva. O que é de bem está com ele, o que é de mau está fora dele”.
Vítima ou herói
“A recusa em aceitar a actual condição é sublinhada. O ego mantém-se longe da realidade factual e próximo da realidade narcísica. O autor desenha uma narrativa de conflito de onde se exclui. Egodistonia. Só é ele se for a vítima ou o herói. Ou seja, a instrospecção é afastada, pois implica reconhecimento de responsabilidade ou culpa”, refere o professor.
Liberdade de expressão
Sobra-nos em emoção o que nos falta em reflexão. Em dez dias de prisão preventiva, o antigo líder socialista falou quatro vezes à comunicação social. Nas epístolas ao “Público”, TSF, “Expresso”, RTP e “DN” faz valer o seu direito ao contraditório na praça pública, mesmo sem que o juiz Carlos Alexandre se tenha pronunciado. Se não servirem para mais, as cartas de Sócrates têm o mérito de desencadear o debate sobre os direitos de um preso preventivo.
Grafólogo diz que está em pânico
O manuscrito foi avaliado por Luís Philipe Jorge, perito em caligrafia (“Correio da Manhã”, 5 de Dezembro de 2014). Revelou o perito que Sócrates
“está aflito, em pânico. Não no sentido psicopatológico, mas por sentir uma ameaça”.
O especialista diz ver no manuscrito traços de
“um animal ameaçado” e afirma que o autor sabe
“que vai ter que afirmar, alegar, factos acontecimentos, ideias que não são conforme a realidade!”.
Afirmou ainda tratar-se de uma escrita sem
“autenticidade” cuja letra revela que
“é uma pessoa em quem não se pode confiar”.
A carta de Sócrates
Da prisão preventiva…
Prende-se para melhor se investigar. Prende-se para humilhar, para vergar. Prende-se para extorquir, sabe-se lá que informação. Prende-se para limitar a defesa: sim, porque esta pode “perturbar o inquérito”. Mas prende-se, principalmente, para despersonalizar. Não, já não és um cidadão face às instituições; és um “recluso” que enfrenta as “autoridades”: a tua palavra já não vale o mesmo que a nossa. Mais que tudo – prende-se para calar.
E – suprema perfídia – invoca–se, para assim proceder, as regras do Direito, a legitimidade da democracia. “As instituições estão a funcionar.”
E do segredo de Justiça
Prende-se, também, de uma outra forma – na prisão da opinião pública. Sim, há o segredo de Justiça, mas esse só a defesa está obrigada a cumpri-lo.
Nem precisam de falar – os jornalistas (alguns) fazem o trabalho para eles. Toma lá informação, paga-me com elogios. Dizem-lhes o que é crime conhecerem, eles compensam-nos com encómios: magnífico juiz; prestigiado procurador; polícia dedicado e competente.
Lado oculto e podre, é certo. Mas há quanto tempo o conhecemos? Há quanto tempo sabemos que a impunidade de quem comete esses crimes está sustentada na intimidação e na cumplicidade?
Sim, na intimidação, desde logo. O recalcitrante sabe que arrisca uma campanha negativa na imprensa, senão mesmo uma investigação. E sabemos como pesa a simples notícia de que se está sob investigação.
Mas, também, a cumplicidade. Digamo-lo sem rodeios: o “sistema” vive da cobardia dos políticos, da cumplicidade de alguns jornalistas; do cinismo das faculdades e dos professores de Direito e do desprezo que as pessoas decentes têm por tudo isto. De resto, basta-lhes dizer: “Deixem a Justiça funcionar.” Sim, não se metam nisto.
É verdade que, há muito, alguns desafiam o sistema e dizem abertamente que a justiça foi ultrapassada. Bem o vemos. Mas, e se foi ultrapassada por aqueles a quem confiamos a nossa liberdade? Sim – pergunta clássica – quem nos guarda dos guardas? Silêncio. “As instituições estão a funcionar.”