
Escrevi aqui sobre Salvador Sobral uma única vez. Para dizer (e mantenho) que preferi que tivesse sido ele a ganhar a Eurovisão e não qualquer um dos deprimentes espectáculos pirotécnicos disfarçados de música. Não disse, em nenhum momento, que achava a música ou a interpretação geniais, como parece ter sido a sentença pública. Não sou crítico musical, e a minha opinião vale o que vale, que é pouco ou nada. Mas acho a música pouco mais do que gira, com a vantagem e defeito de ser igual a tantas do cancioneiro do género dos anos 40 ou 50. É agradável ao ouvido, fica bem no meio de outras das rádios suaves. E não é dizer pouco. Mas a minha opinião sobre melodias não interessa. Penso que já posso, como português, ter opinião sobre o comportamento do jovem talento, porque me parece que o traque do concerto solidário vem numa sequência “lógica”: não foi gás do momento. Parece-me que Salvador vive um dilema desde a primeira hora. Tentar agradar a todos é uma tarefa complicada. Sinto-o desconfortável e o traque só mo confirmou. Salvador cultiva a figura da alma livre, o músico pela música, que se junta a compinchas e mesmo que perante uma mera dúzia no público tocam como se fosse o último dia, porque é tudo amor à arte, mais o blá-blá do costume, o dos artistas muito puros que não se vergam ao vil comércio. Ainda assim, concorreu à Eurovisão. Como, de resto, tinha concorrido a tudo o que era concurso de talentos, que existem, que eu saiba, para quem procura o seu espacinho no apertado espectro da fama. E eis que o dilema se agiganta. Salvador limpou o concurso português e foi esmagar a Kiev. Talvez nem o próprio o sonhasse, mas aconteceu. A partir daí, foi um acumular de infelicidades aos microfones. Quando não está a cantar estrofes, Salvador tem um problema com o que diz. Tudo espremido, deu sempre a ideia (já devia estar a pensar no traque) de que se está a cag**. Esquece-se disto: se abraçou o circo e as mordomias, fica-lhe mal cuspir na sopa. Passou logo a queixar-se, muito irreverente, muito estrela rock, das multidões que o aclamam. O que se passou no concerto solidário foi apenas o corolário desta atitude. Sendo que foi tendo a sorte de uma superprotecção dos media e redes sociais, que branquearam por completo o que já se notava à légua. Correram sempre em seu socorro, a explicarem-nos que os grandes artistas são assim, temperamentais, ou como tanto se escreveu “rebeldes sem filtro.” Resumo da sua frase no concerto: piscou o olho aos amigalhaços (músicos sérios), a dizer-lhes que não se vendeu; quis ter piada, um duplo disparate, porque não tem e não era noite para isso; foi mal-agradecido para os que continuam a aplaudi-lo como não fariam pelo Frank Sinatra. Dizem alguns que não teve mal nenhum, que foi coisa inofensiva. Desculpem, mas não. Uma piadinha de cocó sobre cocó numa noite em que se choram mortos e desalojados? Da próxima vez mais lhe vale dizer que não vai. Fica o rebelde de consciência tranquila, longe das multidões. E a solidariedade mais limpa, sem cheiros adicionais.

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