No interior da sala da sua casa de Paço de Arcos, Ruy de Carvalho exibe, com orgulho, as dezenas de fotos de família que estão espalhadas pelo espaço. Aqui não faltam, também, as condecorações e os inúmeros prémios que recebeu. O ator desvaloriza: “Juro que não sou eu que os espalho por aí”. Mas são sinal de uma carreira de mais de 70 anos e que continua cheia de vitalidade. Exemplos: o regresso a “Inspetor Max” e o êxito no teatro com “As Árvores Morrem de Pé”.
Noventa anos. E agora?
E agora? Bem, agora é tentar manter-me na posse de todas as minhas capacidades. E como é que mantenho estes 90 anos? Trabalhando e não pensando que morro! Enquanto estiver cá vou vivendo intensamente a vida que me foi dada, porque é um bem que tenho.
E como é que se sente?
Sinto-me bem, tenho um miúdo cá dentro com 18 anos e esse não morre. É uma espécie de uma conserva e não abdico dele. Fisicamente estou bem, ainda tomo banho à vontade, guio, sou capaz de ir ao Porto e voltar e isso é uma coisa que me ajuda muito a viver melhor.
São 90 anos bem vividos?
Bem vividos e bem recompensados. Tenho notado que as pessoas me estimam, que me tratam muito bem, acham que tenho sido útil ao meu país. Estive há pouco tempo em Albergaria-a-Velha e fiquei tocado com a amizade e carinho tão grandes. Acho que não tem sido inútil a minha passagem por cá.
Que memórias guarda da infância?
Recordo-me de coisas muito boas, particularmente a passagem por África. Vivi lá, fiz 2 anos de idade em Angola, estive lá quase cinco. Vim para a Covilhã, onde frequentei a escola primária e fui colega de um grande homem das Letras chamado Alçada Baptista, que foi meu colega de carteira.
E, aos 90, tem tudo o que quer?
Tenho sido feliz, tenho uma vida familiar muito boa e tive uma grande companheira, que foi a minha mulher, a minha querida Ruth. Tenho netos muito porreiros, um é engenheiro, outro é piloto comercial e o outro anda à procura de petróleo em Portugal. Tenho um filho que é ator e uma filha que é colega sua, é jornalista. Sou um homem mais ou menos feliz.
Mais ou menos?
O que é que me falta? Que haja paz no mundo. Que os homens se entendam mais uns com os outros. Faz-me falta também viver num país mais entregue à cultura, à leitura, ao teatro, à música, à dança, à escultura, à arquitetura, enfim, tudo aquilo que seja belo e que faça bem ao espírito.
A sua mãe era pianista e o seu pai militar. O que herdou deles?
Herdei o gosto pela arte porque, apesar de ser militar, o meu pai gostava muito de arte. Os meus pais eram viúvos e tinham dois filhos cada um. Eu, portanto, tinha quatro irmãos e era solteirinho.
Foi muito protegido?
Fui mimado pelos meus irmãos, três rapazes e uma menina. Éramos todos muito amigos uns dos outros, o que era engraçado. Os irmãos por parte da minha mãe eram atores e da parte do meu pai um era militar e o outro comerciante.
Que melhores e piores momentos elege ao longo da sua vida?
Os momentos muito bons foram o nascimento dos meus filhos e o meu casamento. Os maus são só quando parte alguém que se ama. De resto, insisto em dizer que é aquilo que se vai passando pelo mundo: anda tudo à luta e eu gostava que isso se apaziguasse. Tenho pensado que o Papa Francisco pode fazer isso. Continua a ser tão homem e tão preocupado com os seus semelhantes da Terra que até ainda nem descalçou as botas que tinha. Ele é Papa para ajudar realmente e para fazer bem ao mundo.
Além dos conflitos, o que o preocupa a nível internacional?
O Trump, nos Estados Unidos! Começa a preocupar-me o nome dele, porque ele é Trump e gostava que ele não fizesse trampa. Mas já está a fazer alguma. Quando ele se começa a separar do mundo faz lembrar o Salazar. Orgulhosamente só. E não se pode ser orgulhosamente só. A América é feita por muitos povos, não é só pelo americano: há muito hispânico, há muito italiano, há muito irlandês, muito inglês. São os que fizeram a grande América que é hoje. O Trump fala muito em aldrabice nas eleições presidenciais, mas, se calhar, foi ele que as fez. Se ele fala tanto nelas tem culpa no cartório. Espero que ele não faça mais asneiras. Não percebo porque é a que a Inglaterra está tão amiga dele, assim como o Putin.
E a nível nacional, como tem visto a política que se faz por cá?
Conheço o Marcelo Rebelo de Sousa desde miúdo. Tem sido como ele é, um homem aberto, sempre a andar na rua e a contactar com as pessoas. Aprecio e sou amigo dele. É exigente quando faz crítica e diz aquilo que pensa. Está a contribuir para apaziguar um bocadinho o ambiente em Portugal entre a esquerda, a direita e o centro.
E o primeiro-ministro, António Costa?
Está a fazer um bom trabalho também. É giro se ele se entender de facto com o Marcelo.
Voltando à sua carreira, ainda está magoado com a TVI por ter prescindido do seu trabalho há uns anos?
O problema aqui foi a maneira como se mandam embora as pessoas. Isso é que é às vezes chocante. Trabalhei 14 anos como exclusivo da TVI e mandaram-me embora sem dizer adeus… magoou-me um bocadinho. Foram 14 anos em que dei o melhor que pude. Hoje está tudo em ordem.
Entretanto, multiplicam-se os projetos, um deles para a estação.
Estou a gravar a nova série de “Inspetor Max” e a fazer para o teatro a peça “As Árvores Morrem de Pé”, do La Féria. Agora parámos porque um colega, o Carlos Paulo, teve de se ausentar para o Brasil, onde foi fazer uma homenagem ao João Villaret. Saímos de cena com uma casa a esgotar! A peça tem tido um êxito extraordinário e vai ter mais porque vamos começar uma digressão pelo País.É um desafio voltar a gravar
“Inspetor Max”, tantos anos depois?
Sim. Na série agora sou mais velho e tenho dois cães (antes só tinha um). O pai está sempre ao pé de mim porque é velho como eu.
Continua a trocar impressões com os atores da sua geração?
O mais possível. Nós temos cumprido o nosso dever como atores e como artistas. Vou referir-me agora à Eunice Muñoz. Ela é uma grande atriz, sou fã dela. Além de ser uma colega extraordinária, é como se fosse minha irmã. Também sou muito amigo da Carmen Dolores, entre outros.
Há quem defenda que há demasiados atores a chegar da área da moda para a representação. Concorda?
O facto de eles virem da área da moda… se eles tiverem jeito são tão bons como os que não vieram da área da moda! Só trazem é outra coisa: são mais bonitos, têm o corpo mais bem tratado. Não tenho nada contra eles, desde que tenham qualidade.
Quais foram os três momentos mais relevantes da sua carreira?
O dia em que fui homenageado pelo Presidente da República, quando nasceram os meus filhos, o dia do meu casamento, os meus netos. A minha parte mais importante é a família. A minha profissão está ao serviço da minha família.
“Vila Faia” é a novela da sua carreira?
É, talvez, a mais emblemática. Por ter sido a primeira novela portuguesa e tratar, nos anos 80, de temas sensíveis, como a droga e a prostituição.
Que papel gostaria que fosse o próximo?
Agora estou numa fase em que já só faço aquilo que os outros querem que faça. Também nunca pedi nada, as coisas aconteciam. Normalmente, faço papéis bonzinhos, mas gostava de fazer de mauzinho, porque não o sou na vida real. Gostava de sair o mais possível de mim.
Reza à noite?
Não. Sou capaz de fazer uma oração, tenho um credo ao pé da minha cama.
O que pede para si?
Não peço nada a Deus, ofereço! Ofereço o meu trabalho, a qualidade da minha profissão. Pedir para quê? Eu tenho é de fazer bem!
O que é que o emociona?
A qualidade das pessoas, isso emociona–me. Ver a fazer bem aos nossos semelhantes, a tratar bem os animais. Sou um homem do bem e não do mal, mas o que aparece normalmente é o próprio mal. Se não houvesse tanto bem, era capaz de o mundo já ter acabado. Felizmente há ainda quem faça muito bem!
O que é que o faz chorar?
Ver sofrer alguém. As pessoas sofrerem com fome, com falta de meios de vida. Filhos que são abandonados pelos pais ou vice-versa. Faz-me muita impressão como, às vezes, acaba o amor familiar. Como é que deixa de existir, embora, às vezes, esse amor se encontre noutra pessoa.
Acredita na vida depois da morte?
Acredito, mas há quem não acredite. São menos felizes do que eu, que tenho fé… E há uma companhia à minha espera lá em cima.
Acha que vai reencontrar a Ruth, a sua alma gémea?
Vou reencontrar toda a gente. A Ruth também.
Sente muito a falta dela?
Não, porque dedico-me ao meu trabalho. Ela continua aqui comigo. Sinto a presença dela (aponta para o lado). Ela está aqui, no meu quarto, nos meus filhos.
Como é que gostaria de ser recordado?
Pela minha passagem pelo mundo, se foi útil. Que digam: “Olha, este tipo deixou ficar alguma coisa de qualidade”.
Tem medo da morte?
Nenhum, é algo natural, nem penso nisso. É um segundo, porque é que eu hei de estar a pensar nisso? Já tive momentos muito maus de saúde na minha vida e não me entreguei, porque havia de o fazer? Quando chegar a hora própria, ela chega.
Arrepende-se de alguma coisa nestes 90 anos?
De nada. Se puder dar algo melhor ao mundo do que aquilo que tenho feito, farei, com muito gosto. Tenho sido um homem que julgo que tem cumprido com os seus deveres como cidadão, pago impostos que nunca mais acaba. As pessoas acham todas que sou muito rico…
E não é?
Não sou, até sou bastante pobre. O que tenho foi aquilo que ganhei, não tirei a ninguém. Lá fora, teria uma reforma que não precisaria de trabalhar. É pouquinha, mas não vou dizer quanto, porque ganho mais do que outras pessoas, que têm reformas mais pequeninas. Descontei para ela. Acho que ao fim de 70 e tal anos de profissão mereço ter qualidade de vida suficiente. Com a reforma, apenas, não teria a qualidade de vida que tenho. Tenho quem trabalhe em minha casa e pago-lhe o suficiente para ela não viver mal. Agora, ser rico, roubando, é que eu já não gosto e isso há muita gente que tem feito!
Os atores costumam ser pessoas de egos. Também tem um ego grande?
Olhe bem para mim, acha que sou vaidoso? Tenho para aí muita fotografia mas não sou eu que as ponho. Não, não tenho o culto da personalidade, tenho, isso sim, o culto do ser humano. Não sou vedeta em parte nenhuma, sou um cidadão normalíssimo com jeito para representar. Julgo que os meus colegas percebem isso e acho que é uma das coisas que os fazem gostar de mim!
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