De toda mais esta confusão em torno das escutas e afins, parece-me óbvio, descontada toda a poeira que anda pelo ar, que José Sócrates acabou por responder ao essencial dizendo, furioso…que não respondia. E não respondia porquê? Porque se andam a dizer mentiras do tamanho do mundo? Não. E aqui reside o ponto essencial, se me permitem.
Sócrates indigna-se, primeiro por interposta pessoa (os seus ministros) com a "calhandrice". Referem-se os homens de mão de Sócrates ao facto de uma cidadã ter escutado uma conversa de que não gostou e ter informado Mário Crespo, o visado. Não se ouviu, da parte dos seus ministros ou do próprio, a negação dessas palavras. Não se ouviu uma reacção de verdadeira indignação: "como é possível pensarem que alguma vez eu falaria nesses termos de um jornalista?". Não, isso nunca foi negado. O que se criticou foi o facto de haver alguém que as tenha escutado e reproduzido. Com as novas escutas, a mesmíssima coisa.
Agora o próprio Sócrates chama-lhe "jornalismo de buraco de fechadura", quando talvez valesse a pena (digo eu) afirmar e reafirmar com veemência que, obviamente, seria impensável que ele, sobretudo na pela de primeiro-ministro, alguma vez urdisse um plano que tinha por finalidade assegurar um controlo em mãos de confiança de alguns importantes órgãos de comunicação social. Isto não lhe ouvimos.
A fúria de Sócrates e do governo vai contra a quebra do segredo de justiça: e mais uma vez malha-se no mensageiro, neste caso o jornal que dá vida a essa fuga, e faz chegar aos portugueses factos e palavras que deveriam ficar no segredo dos deuses. Acresce que, ao conhecermos o teor das escutas, que tem vindo em crescendo, concluímos que será preciso mesmo muito para que o Procurador-geral da Republica ou o presidente do Supremo Tribunal considerem haver ilícito criminal. Está visto que um plano ao mais alto nível para calar/controlar meios de comunicação social e jornalistas não basta…
Que será preciso então, para que haja vontade de investigar e de agir? Que nas escutas se preparasse, preto no branco, um homicídio? Um roubo a um banco? Se factos são factos, os portugueses têm este para tirar conclusões: o que vem transcrito nas escutas é o desenho de um plano para afastar uns e promover outros. E a isto o Procurador e o presidente do Supremo encolheram os ombros.
Quanto ao jornalismo de buraco de fechadura, ou a mera calhandrice, acredito piamente que o governo não goste. Mas conviria algumas lições básicas sobre o exercício da nossa profissão. Chame-se ou não buraco de fechadura, uma das funções do jornalismo será sempre a de investigar, procurar saber por meios próprios se haverá alguma coisa escondida nas "verdades" que nos impõem. É isso que o público espera do jornalismo, sob risco de se passar a chamar qualquer outra coisa.
O problema, parece-me, é que actualmente, tudo o que tente ir um pouco mais além do que tentam permanentemente vender as agências de comunicação ao serviço de governos e empresas, corre o risco de ser corrido a insultos de buraco de fechadura. Está visto que para alguns governantes os jornalistas deveriam limitar-se a ficar do lado de lá da porta fechada, bem comportados, à espera de receberem um comunicado que depois transcrevem na íntegra, sem contraditório ou desenvolvimento. E nada nos garante, por este andar, que não venha a ser assim. Mas ao menos arranjem outros nomes para esses profissionais e empresas: porque de jornalistas já não terão absolutamente nada.