
Que a maldade humana não tem limites, sabemos todos há muito. Temos exemplos mais ou menos clássicos. Dos genocídios, lá longe, ao homicídio passional a três quarteirões de nossa casa. Mais os maus-tratos sobre velhos e crianças, violações, pedofilia, sequestros. Mais a violência psicológica no local de trabalho, amigos que enganam amigos. Um sem-fim, do tamanho do mundo, e desde que ele existe. Mas ainda há, de vez em quando, uma história aparentemente menor, no grande quadro da capacidade para fazer sofrer, que nos ensina que ainda não vimos tudo. Um homem fazia-se passar por mulher. E, sendo mulher, era médica. Que dizia a outras mulheres, por telefone, que tinham cancro. Ainda assim, aconselhava uns exames complementares, para certezas absolutas. Falava de novas tecnologias, como as pequenas câmaras da internet, ou mesmo os satélites. E assim convencia as mulheres a mostrarem os seios, e apalpá-los, para que ela pudesse chegar a um diagnóstico mais completo. Por incrível que pareça, a coisa ainda andou uns tempos, até uma das visadas achar aquilo estranho. Lá se concluiu que era patranha, óbvia. E que era patranha para o indivíduo se excitar sexualmente. Repito: dentro do horror do que fazemos uns aos outros, ainda há histórias de pasmar. Não lhe bastam, a este monstro, as mil e uma maneiras de espreitar intimidades que há hoje à disposição. Conseguiu elaborar uma maldade que julgávamos impossível. A sua excitação passa por dizer a mulheres que estão a morrer para depois as levar a mostrarem-lhe o que queria ver. A sua doentia ânsia de espreitar um seio era tal que calculo que nem lhes olha a expressão: onde ele vê um seio a descoberto, elas procuram, em desespero, um último diagnóstico humilhante que as salve da morte iminente. E alguém que brincou com a pior expectativa humana, de forma aberrante e humilhante, sai do tribunal a acender um cigarro, a encolher os ombros ao termo de identidade e residência. Poder-se-á dizer que o crime de que é acusado é de tal forma rebuscado e absurdo que a lei ainda não redigiu penas para tal. Mas está na hora, por estas e outras, mais as que ainda não conseguimos imaginar, de a lei se adaptar às infinitas possibilidades da maldade. É para isso que devia servir.
2- Que as telenovelas (onde reina a TVI) sejam líderes de audiência neste país, não discuto. É um facto, e importa pouco se gostamos ou não. Mas a sua existência e os seus enredos, e as suas produções, mostram também pequenez do país. Sobretudo quando o mesmo país já não se pode queixar de viver num obscurantismo em relação ao mundo. Temos aí à disposição, através do Cabo, o que de melhor se faz no mundo. Claro que, mesmo nas produções estrangeiras, nomeadamente a norte-americana, há uma infinidade de coisas sofríveis ou medíocres. Mas há também uma mão-cheia de séries e filmes de excelência. E há sobretudo uma capacidade de produção e imaginação e reinvenção que deveria fazer parar para pensar quem eterniza modelos básicos, simplesmente porque continuam "a funcionar". Mas o que mais impressiona é a capacidade de revelar quão pequeno pode ser o contentamento. Vejo, nos jornais e revistas, uma extensa notícia sobre uma qualquer novela. Há uma explosão num carro e alguns figurantes aparecem cheios de sangue. Uma cena que não escapa à classificação óbvia – "explosiva"- e que dá direito a notícia. Vejam bem, até explodimos carros e os nossos grandes actores ficam feridos. Agora imaginemos que nos Estados Unidos, Inglaterra, Hong-Kong ou mesmo Alemanha faziam notícia de destaque de cada vez que rebentam com um carro para gravar uma cena…