Um dos factos da noite eleitoral: o animal feroz apostou numa despedida tranquila. Depois de semanas a acreditar num possível empate técnico, que teria sabor a vitória para o PS, eis que a realidade desenganou o engenheiro. Os portugueses já não o querem. E este foi, em grande parte, o resultado. Sim, Passos Coelho ganhou, mas nunca saberá se o fica a dever a si ou à rejeição do outro. Impossível desmentir: após seis anos no poder, era sobretudo Sócrates que ia a referendo. Foi mandado para casa, de forma inequívoca, e ficaremos sem saber realmente se os portugueses votaram no que querem ou no que não querem. Foi tão clara a derrota, que se lhe pode por um carimbo de humilhante. E por isso havia expectativa quanto ao que Sócrates diria quando enfrentasse os militantes e os jornalistas, e, sobretudo, como o diria. Nem sequer foi arroubo do momento. O discurso estava estudado (ou não estivesse em teleponto), e assim se conclui que o engenheiro já tinha escolhido sair com dignidade, chamando aos seus ombros a exclusividade das culpas, com parabéns aos adversários e desejos de um país unido. Anuncia que regressa a militante de base, não quer holofotes e anseia por descanso. Deixa, ou quer deixar, na hora do abandono, uma imagem afável, preferindo não voltar a exibir os rancores e tiques agressivos que o caracterizaram, sobretudo na relação com os jornalistas. Algo me diz que voltaremos a ouvir falar do engenheiro mais cedo do que o previsto. Passos Coelho vai cumprindo com o sonho que acalenta desde jovem. É dos poucos políticos que muito cedo escolheu a via, ou não tivesse sido dos mais mediáticos responsáveis pela Juventude do seu partido. Apostou em ser líder, e conseguiu (o que é raro) nos seniores o que tinha conseguido nos juniores. Poderia ter tido um problema: chamado a eleições pouco depois de chegar ao topo no partido, e em período particularmente difícil, poderia bem ter acontecido um soco na carreira antes que tivesse tempo de levantar voo. Mas a conjuntura, sendo terrível, é também o tempo em que os portugueses se queriam ver livre de alguém. Para fortuna de Passos, era o seu adversário directo. A carreira está a correr como a deve ter planeado. Mas o desafio é enorme. E o seu discurso de vitória foi cauteloso. Fez campanha, e mantém, que fará uma governação que respeitará a verdade, mesmo que ela doa. Assim o esperamos. Pior do que uma crise é venderem-nos a ideia de que não estamos no meio de um furacão. Portas conseguiu o que queria (que o PSD precise dele), mas notou-se uma ligeira frustração por resultados que, sendo bons, não espelharam a subida que as sondagens anunciavam. O PCP continua a ser um fenómeno de regularidade. Já o Bloco é exactamente o oposto. Depois da euforia desgarrada das últimas legislativas, uma queda para números que fazem lembrar o início titubeante do partido. Com a contínua tendência bipolar dos portugueses para escolherem ora PS ora PSD, e com CDS e PCP bem encostados às laterais da direita e esquerda, o Bloco tem muito para reflectir. Mas para reflectir temos muito, em conjunto, cidadãos e políticos: Cavaco Silva parecia adivinhar, naquela mensagem em dia de reflexão. E os números confirmaram os seus receios. A abstenção continua a ser o calcanhar de Aquiles do país, e não foi para isto que se instaurou uma democracia há mais de 30 anos. Sendo que qualquer pessoa percebe (ou deveria ter percebido) que estávamos perante um dos actos eleitorais mais importantes de sempre, dado o presente e o futuro imediato do país. É imoral haver um número tão significativo de portugueses que se demitem da responsabilidade e logo depois hão-de queixar disto e daquilo. Uma nota para os mais distraídos: o Partido dos Animais e Natureza tornou-se, logo à primeira, o segundo mais votado dos pequenos partidos. Gostei.
Nota: Por vontade do autor, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico