O que te quero dizer chega com uma semana de atraso, mas, a mim, pouco me importa. Acontece que esta revista tem prazos para cumprir e eu já tinha escrito a crónica que saiu logo após o jogo que nos colocou no Brasil. Uma semana depois, é ainda sob o feitiço dessa noite que te quero falar. Digo-te agora: obrigado, e terminarei da mesma forma. Pelo meio, quero confessar-te que já me despertaste sentimentos diferentes. Já me perguntei, muitas vezes, sobre algumas atitudes tuas, e sobretudo alguns dos teus gastos. Não porque os devas ou não fazer, não me compete pronunciar-me, mas sobre a verdadeira necessidade de os fazeres. Aqui e ali, pareceu-me sempre mais ostentação, que é defeito vulgar. Mas tenho de relaxar, e perceber que a maioria de vocês, jovens estrelas, parecem ter contas a ajustar com as dificuldades que passaram. Os gastos loucos são, a par do habitual impulso da juventude, uma possível vingança que esfregas na cara do destino. Conseguiste fugir à pobreza de uma difícil vida remediada, e a alegria e alívio que ainda sentes por isso justifica, em grande parte, como gastas a rodos o teu dinheiro. Por outro lado, e é isso hoje o mais importante, o dinheiro é teu, ganha-lo literalmente com o suor do teu rosto. Isso é hoje o que me importa, em contraponto com tanto medíocre e falsário, que enriquece cedo às custas de vigarices ou dinheiro dos outros. E o que me interessa sobretudo, caro Cristiano, é reconhecer em ti a fibra que só os realmente dotados e predestinados têm: a fibra dos momentos que importam. O que me interessa hoje é perceber em ti aquela raríssima e extraordinária conjugação de trabalho, oportunidade e talento. As oportunidades, soubeste aproveitá-las, o talento sobre-humano para o que fazes nasceu contigo, o trabalho, essa tão importante ferramenta para permanecer no topo e não apenas chegar lá, é algo que não descuras. É sabido que treinas mais do que os outros, empenhas-te mais, vives mais no peito o que de ti se espera. E isso tem sido vital. Porque não, só talento não chega, e não faltam exemplos de promessas que nunca foram mais do que isso, porque se esqueceram de trabalhar e evoluir. A acrescentar a tudo isto, tenho apreciado o teu comportamento fora da relva. Sim, é certo, houve momentos em que me enervei contigo, situações em que bastava acenares com simpatia a dezenas de pessoas que por vezes esperam horas por ti, à chuva ou ao sol, e quando sais ou entras na camioneta podias ao menos sorrir. Mas terás os teus dias, como temos todos, e mesmo isso vejo que tens feito um esforço. E agrada-me ver a tua emoção genuína com crianças que te idolatram e que só te pedem um pouco de atenção. E agradou-me ver a elevação com que lidaste com aquela palermice do presidente da Fifa. E naquela noite, na Suécia, agradeço-te teres-me demonstrado o que é ser português. É das minhas maiores contradições: admirar profundamente D. João II e como acreditou sempre que poderíamos descobrir o mundo antes dos outros, mas depois, nesta mediana maneira de ser actual, baixar os braços antes dos embates, já convencido do nosso fado. Por outras palavras: eu não acreditei que passaríamos a Suécia, e já imaginava, triste, que ficarias para a História como Eusébio, a chorar na camisola que tem o nosso escudo. Esqueci-me, imagina, que quando queremos e acreditamos e vamos buscar forças até onde elas já não existem, revelamos então, se a tivermos, a alma de campeão ou de líder. No futebol, ou noutro qualquer campo da vida. E tu juraste, vi-o nos teus olhos, nessa noite, após a Suécia ter dado a volta ao resultado, quando trememos a pensar no nosso fado, tu juraste que não morrerias nem ali nem naquela noite. E levaste-nos aos ombros. Por isso, como te dizia no início, obrigado.
Caro Cristiano Ronaldo
Quando queremos e acreditamos e vamos buscar forças até onde elas já não existem, revelamos então, se a tivermos, a alma de campeão ou de líder