Vou acabar por fazer o que Adolfo Luxúria Canibal queria: vou falar dele. É importante, para mim, afirmar desde o início, que nada me move contra o mentor, principal autor e actor dos Mão Morta. Sinto, aliás, uma ponta de inveja por quem atravessa décadas a fio agarrado ao seu sonho e projecto, com a coragem de fazer o que gosta. Demonstra solidez de carácter, e coerência. Mas, como gostos são gostos e não há nada a fazer, respeitar uma coragem e coerência não é o mesmo que aplaudir. Falo de uma música, com videoclip a tiracolo, que diz que “pelo meu relógio são horas de matar”. Título “provocante”, como se percebe sem grande esforço. Como a letra e imagens que lhe dão corpo. Na corrente de uma certa “arte literal”, a música é, precisamente, Adolfo aos tiros, e gente a morrer lentamente, ensanguentada. Quem são? Figurantes. Mas que “simbolizam” responsáveis do BPN, um deputado qualquer, uma advogada qualquer. Atrás de Adolfo, que dispara com nojo e desprezo, passam imagens muito “subliminares”. Grandes planos do primeiro-ministro, de antigos primeiros-ministros, enfim, de todos esses que andam no “poleiro”, entende-se (nem é preciso subentender). Temos, pois, que isto é tudo gente a abater. Grito de revolta, declaração artística de limite, seja o que quisermos. Mas entenderia melhor se Adolfo a defendesse também até ao limite que nos quis esfregar na cara, e não viesse depois, em entrevista, dizer que não quer que pensem que a sua música é um incentivo à violência (?). Faz-me lembrar o outro que dizia: você é um filho da p…, mas não quero com isto insultar a sua mãe. Das duas, uma: ou se tem a coragem toda ou não. Não se percebe porque escapam com vida Passos Coelho, Sócrates ou Mário Soares (ou algum advogado desaconselhou?). É o problema da meia-tinta, que estala afinal, evidente, nestas supostas demonstrações de bad boy corajoso. Depois, Adolfo Canibal esclarece-nos que o título explícito e claro é apenas uma expressão poética. Ao menos os punks e neopunks não tinham esta preocupação: aquilo era o que era. Mas os Mão Morta querem dizer-nos que pulsa afinal uma alma de artista diáfano em coisa aparentemente tão dura. Da música, pouco gostaria de me pronunciar. Soa-me a quase tudo o que já lhes ouvi, mas eu de música sou nabo. De poesia, se bem tenho lido tanto crítico do País ao longo dos anos, não basta dizer que se é. Não, não defendo ou entendo que a poesia seja feita de passarinhos, flores e pores do sol. Mas, pelos vistos, Adolfo vai deslumbrando tanta alma influente com “os pêlos eriçados como navalhas”, o “clamor que começa a multiplicar-se”, ou quando nos diz que “já há polícias despejados aos magotes pelas ruas”. Quanto ao resto, ou ao essencial, parece apenas prova de vida. Quando anda para aí tanta gente agora a fazer música, tanto miúdo nos concursos, como posso lembrar que ainda existo? Fácil. Vou fazer uma cena bué de polémica. OK, mata-se aquela malta toda. E depois faz-se o quê? Ah, isso já não é com o artista, tinha-me esquecido. O artista atira calhaus, mas apanhá-los depois para construir uma casa nova? Bom, isso alguém que pense nisso.
Isso já não é comigo
Faz-me lembrar o outro que dizia : você é um filho da p…, mas não quero com isto insultar a sua mãe. Das duas, uma: ou se tem a coragem toda ou não