
Sempre achei que os artistas, na sua maioria, faziam melhor em não falar muito sobre as respectivas artes. Com honrosas excepções, é muitas vezes penoso ouvi-los. E até pode embaciar o brilhozinho com que os víamos. A maioria chega à sua arte por instinto, e isto explica-se muito mal por palavras. Mas o novo ou a nova artista de telenovela portuguesa adora falar. Porque dar entrevistas é o mesmo do que tirar fotografias e assim aparecer mais um pouco, que isto são egos que gastam muito combustível.
Sempre que folheio uma entrevista com um actor ou actriz, todos ambicionam sempre muito mais. Querem o limite, como lhe chamam. Todos suspiram pelo papel de mau ou vilã, ou de toxicodependente, ou bandido, ou vítima que há-de chorar com histeria. Adoram-se tanto que proclamam que gostariam de sentir a sua personagem odiada quando são abordados nas ruas: a garantia de que estão a ser o máximo. Alguém os convenceu de que estes papéis são mais difíceis do que os outros, mas já nem vou por aí. Para o que me interessa hoje, a entrevista em causa era com uma jovem actriz que desempenha, ao que parece, o exigente papel de vítima de violência doméstica.
Claro que aceitou o “desafio”, porque estas personagens são “desafiantes”. E claro que se atirou a uma preparação muito cuidada. Abraçando o “método”, que ouviu dizer que se faz em Hollywood. Então, para fazer bem de vítima de violência doméstica, claro que foi falar com vítimas de violência doméstica. As do mundo real. E depois dá então conta à revista que passou a “ver a violência doméstica com outros olhos”. Bom, não é prejuízo nenhum. Mas interroguei-me então o que lhe teria causado tanta surpresa, que novidade retirava do seu metódico estudo para o papel? A actriz elucida-me pouco depois. Descobriu, ao falar com as vítimas, que muitas delas sofriam uma convulsão interior porque amavam o agressor, ou que estavam ainda apaixonadas. Portanto, é feita desta massa a profundidade emocional dos nossos jovens intérpretes.
Um psicólogo que ande no primeiro ano, ou qualquer pessoa que ande na vida de olhos abertos, sabe há muito que esta ferida profunda e inexplicável, este subterrâneo e perigoso abismo da mente é, obviamente, um dos monstros destas relações. Porque pertence às cavernas onde o nosso consciente, inconsciente e subconsciente se devoram, sem vencedores nem vencidos, numa contínua confusão entre cabeça e coração, que as faz, tantas e tantas vezes, aceitar de novo, e de novo, e de novo, o demónio que ontem lhes deu uma sova ou encostou uma faca à garganta. Mas a nossa actriz descobriu isto agora. Pensava ela que estas mulheres só não se separavam porque muitas vezes não tinham para onde ir. E é assim que os nossos argumentistas de novela e actores pensam vestir a pele de alguns “papéis-limite”: tendo das matérias umas breves e leves noções, condizentes com a forma leve e fresca como levam tudo. Lendo o mundo e as almas a preto e branco: “Se ele me bate já não gosto dele, claro”. Por isso, não admira que as interpretações e histórias sejam o que são: uma ladainha previsível de bonecos pendurados por fios de lugares-comuns. Historietas a preto e branco sobre pessoas. Que são, somos todos, uma enorme confusão de milhões de tons de cinzento.