
Acho que a Maria João não se importará que eu use como título destas linhas uma frase que ela me relembrou outro dia. Para quem não saiba, a Maria João é a mulher do Rui Tovar. Alguns mais apressados corrigir-me-ão, e pensarão viúva. Estão enganados, mas nem percamos tempo com isso, de tão óbvio. Quando dou por mim muito triste, muito desiludido com a minha impotência de fazer seja o que for para reverter o destino, quando me zango outra vez com as palavras, e com sua afinal incapacidade de mudar seja o que for, dá–me para escrever. Sabendo que é inútil. Mas hoje quero dizer o que tantos já disseram nas suas vidas: perdi um amigo. Perdi o futuro, não o verei mais. Mas ninguém nos tira o que fez de nós amigos. No velório, a Maria João passou–me em revista o sofrimento dos últimos anos. Disse-me: como sabes, o Rui já estava muito doente do coração há muito tempo. Eu fiz uma cara de quem sabia. Mas não sabia. Não na proporção violenta que entendi nesse dia. Já não o via há muito tempo. E contava revê-lo em breve. Dentro da vazia estupidez de uma notícia seca que me acordou nesse dia, dei por mim a perceber que nos últimos tempos andava a recordá-lo mais do que nunca. Soube, com alegria, que alguém se tinha lembrado e respeitado o seu enorme e inigualável valor, e o tinha convidado para comentar na televisão o Mundial de Futebol. E eis que o Rui acaba por partir com um Mundial a meio. O que me faz sorrir, a meio das lágrimas. Tinha de ser assim. Nestes dias em que ainda ando desconcertado com esta absoluta impossibilidade que a morte encerra (o nunca mais), aconteceu que as meias-finais deste excitante Mundial atiraram para a final a Alemanha e a Argentina. Vinte e quatro anos depois. Mais uma vez, é o Rui a mexer os cordelinhos e a falar comigo. Não pode ser coincidência. Na última final entre as duas seleções, em Roma, 1990, eu e o Rui sentámo-nos mais uma vez lado a lado na bancada. Não foi a primeira vez, não foi a última, mas foi especial. Eu era um caloiro da televisão, sentado ao lado do mestre, com uma final do Mundial pela frente. Há dias e dias, na vida. Este, confessei-lhe anos depois, nunca, mas nunca me deixou. O Rui sorriu, com aquela leveza sarcástica e fina. Como poderia esquecer que foi ao lado dele, amparado por ele, guiado por ele, que vivi a emoção de uma final, como vimos e vivemos parte importante da história do futebol: a poucos metros de nós, ao vivo, Maradona chorava. Nesse jogo, como em tantos outros, eu assistia ao vivo a outro espectáculo à parte. Os comentários do Rui, que desenterrava da sua prodigiosa memória as mais espantosas informações, sem um único papel na mão, muito antes das internets e googles (que hoje transformam um imbecil num génio em 20 segundos). Mas não só esses concertos de memória, ironia fina e sentido de humor. Digo-o sem pudor ou satisfação; já não conto aprender com ninguém. E quando olho para trás, sei que muito do que sei devo ao Rui, ao Carlos Pinto Coelho, ao Zé Mensurado, e a outros, que com o simples exercício da sua postura e verticalidade me deram lições que trago sempre comigo. Tive sorte. A ventura de encontrar uns quantos feitos de um molde que já não se fabrica. Provavelmente, o Rui partiu sem saber o quanto lhe devo, o quanto o respeitava, o quanto lamento as conversas que já não voltaremos a ter sobre um jogo, um livro, um filme, uma notícia mal escrita ou sobre os absurdos do dia a dia que nos faziam rir. Fica dito, neste momento em que choro e rio, porque me lembrei de uma piada dele.