
É curioso o que a idade vai fazendo quando não somos crentes. Dou por mim com fé, um desejo longo e profundo, uma fé mesmo, de que estarás em paz. Não sei se num sítio melhor, mas já longe da dor. Da agonia com que partiste lentamente. Para falar de ti, terei de adoptar aquela táctica das nossas conversas: quando me chamavas por causa de um qualquer assunto, dizias que preferias começar pelas notícias más, e depois terminarias com as boas. Assim seja, começarei pelo que menos gostei de ti. E esse menos é mesmo o menos da questão. Não gostei de te ver e ouvir na última fase profissional. A disparares em muitas direcções. Irado e guerrilheiro. No final da teu reinado na SIC, sabes bem (porque te disse) que achei que foste muitas vezes precipitado, e muitas outras injusto com pessoas que não to mereciam. Havia já um descontrolo que geriste mal. Dir-se-ia que nas vitórias tinha sido fácil encher o peito, e na derrota mostravas um pouco do teu pior. Dito isto, vamos ao que interessa. Criaste, literalmente, um país novo através do jornalismo. Porque pressentiste, desde cedo, que um país se muda pela forma como se vê reflectido. Que só pode ter vontade de mudar se começar a não gostar da imagem que vê ao espelho. Aos espelhos, que moldaste com a TSF e com a SIC. O País real era mostrado, finalmente. Que viessem outros julgar e reflectir, a nós competia-nos, como dizias, mostrar tudo na verdadeira dimensão, sem esconder ou embelezar, mas também sem manipular. Mas mais importante que a visão foi a coragem de o fazer. E a capacidade para o saber transmitir a quem contigo trabalhava. Disse-se, entretanto, que a verdade é que tiveste também muita sorte com as Redacções que dirigiste. Que te calharam alguns dos melhores profissionais que até agora surgiram. Sim, talvez. Mas talvez porque tenhas sabido escolhê-los. E estar atento aos novos valores, e pressentires qual podia e devia ser a especialidade de cada um. A isto chama-se, entre outras coisas, capacidade de liderança. É uma característica inata, como o ouvido para a música ou o jeito para o negócio. Ao contrário do que julgam os medíocres aspirantes a gestor que compram livros com segredos do sucesso, a arte de liderar não se aprende. Nem se ensina. Nem se herda. Ela provém directamente de uma coisinha pequena e inexplicável, chamada carisma. Um líder faz-se seguir. Mas qualquer ditadorzeco pode fazer-se seguir por medo, ou porque os seguidores não têm preparação para distinguirem o que devem ou não querer. Isso seria difícil em Redacções de homens e mulheres crescidos, informados, com cultura acima da média. Se nos soubeste fazer seguir-te foi, quase sempre, porque nos provaste mil vezes que a tua intuição era de confiança. E porque nos deste inúmeros exemplos de coragem. Perante as pressões que sempre existem, num poder tão exposto e importante como o jornalismo, sempre te vimos defender-nos primeiro e perguntar depois. A tua primeira reacção era sempre por nós, e ao nosso lado. É nisso que quero hoje pensar, e recordar. E é justo que seja sobretudo por isso que fiques no merecido, e incontestável, lugar na História do país contemporâneo.