
Comecemos pela declaração politicamente correcta e bombástica da RTP: não emitiremos mais imagens de reféns do Estado islâmico, porque isso é propaganda de borla a terroristas. Não tanto o que se disse, mas o tom em que se disse: um piscar de olho, como que diz que quem o faz é um asqueroso sensacionalista (SIC e TVI, entenda-se), enquanto a RTP é pura e humanista. Parte da declaração eu entendo e até apoio. O problema é sempre o mesmo: a RTP gosta de estar sempre a proclamar-se a única virgem do bairro.
Na SIC, debatemo-nos com a dúvida desde o primeiro dia, e não andamos a publicitar exercícios de ética. Só que, a sermos sérios e bons profissionais, a questão não é assim tão simples. No jornalismo, é eterna, e sabe Deus quantos mais desafios teremos de enfrentar. Ou seja: como falar de um horror (alertando para a existência desse horror) sem o mostrar, um mínimo que seja? A decisão de não mostrar nada é razoavelmente fácil, porque elimina logo o trabalho de tentar fazer reportagens equilibradas: corta-se o mal pela raiz e não se fala mais nisso. Mas, pergunto, omitir por completo a existência de um horror não será, para todos os efeitos práticos, uma forma de desvalorizar um horror, de considerar que ele já nem sequer é notícia? Quando este horror já não for notícia, o que será, afinal? O dilema é grande, sem dúvida, e grave, pela natureza brutal do que mostra ou sugere. Mas há que não deixar de ser jornalista.
Sempre defendi que não há boas ou más matérias, há bons ou maus jornalistas. Defendo que se deve dar uma ideia mínima do que se passou nestes casos de selvajaria, e nesse sentido tem de estar lá, nem que seja por breves segundos, a imagem da futura vítima ajoelhada, com os carrascos atrás. Mas breves segundos são breves segundos, e tudo o que vai para além disso instaura um terrível desconforto: obriga-nos a ver um homem que sabemos que vai morrer. Essa sugestão é, também, brutal. E deve, pois, evitar-se ilustrar toda uma reportagem sobre as acções do Estado islâmico com a repetição, até à náusea, desta expectativa de morte medieval. Neste particular, inclino-me a perceber a posição da RTP, embora lhe desse mais importância e significado se tivesse nascido na cabeça dos seus responsáveis. Não foi o que aconteceu: ouviram falar de uma posição semelhante de outras televisões muito “sérias”, e juntaram-se ao rebanho. O tom jornalístico, obrigado a ser imparcial, não deve (nem pode) perder o seu direito humanista à indignação. Mas, como em tudo, não posso falar de alhos e mostrar bugalhos. Se falo com o tom dramático que as circunstâncias justificam, devo mostrar um mínimo que torne compreensível a minha indignação.
Com bom senso e sensibilidade, como devo fazer em tudo o que exibo. Não aceito é lições de moral nesta matéria. Por último, em jeito de curiosidade, acompanhei com interesse o silêncio a que se remeteu a nossa Esquerda sobre tamanha barbárie continuada. A explicação deve ser assustadoramente simples. A Esquerda não gosta dos Estados Unidos. E o Estado islâmico quer atingir e assustar, sobretudo, os Estados Unidos. Logo, a Esquerda não se indigna com o que faz o Estado islâmico. Que sejam degolados inocentes, não chega para agitar sensibilidades, muito menos para abanar ideologias.