De alguma forma, todos sabiam a vida que aquela família vivia. Os vizinhos, a CPCJ da Amadora, a Segurança Social, o Ministério Público… Nada aconteceu até à madrugada de sexta-feira (17), quando Sira Pereira, 14 anos, perdeu a vida por querer pôr os irmãos a salvo. Era madrugada, as crianças estavam sozinhas no apartamento do segundo andar do número 38 da Rua do Cerrado, no Bairro do Zambujal, na Amadora. Sira era a mais velha. Ajudou duas irmãs do sexo feminino com 1 e 2 anos e mais três rapazes com 3, 4 e 6 anos a sair do inferno das chamas. Porque voltou atrás não se sabe. Morreu.
Uma heroína
Subiu e desceu as escadas com eles ao colo, ou pela mão, tantas vezes quantas as necessárias para os pôr a salvo. Depois subiu uma vez mais. Não se sabe como nem porquê. Nem se sabe se os vizinhos a tentaram ajudar ou porque a deixaram subir de novo. Era a única que ainda permanecia no interior do apartamento em chamas quando o socorro chegou. Estava deitada num beliche e enrolada numa manta e assim foi resgatada pelos voluntários da Amadora, já em paragem cardiorespiratória devido à excessiva inalação de monóxido de carbono. A equipa do INEM reanimou-a e partiu para o hospital. No caminho, a menina tornou a entrar em paragem respiratória e chegou ao Hospital Fernando Fonseca já cadáver. Os pais teriam ido comprar tabaco. Chegaram ao local já perto das 4 h e seguiram para o Hospital Amadora–Sintra. Já Sira tinha morrido, vítima do silêncio, do abandono, da família, da Segurança Social e de todos nós.
O incêndio
O alerta foi dado às 3.40 h por um vizinho. Ao fogo acorreram 12 voluntários da Amadora (cinco viaturas) e seis profissionais do INEM (três ambulâncias) apoiados por uma trintena de polícias. Os ânimos chegaram a estar exaltados. Os trabalhos de socorro foram dados como concluídos às 6 h da manhã e os moradores do prédio de cinco pisos regressaram às suas habitações pouco depois. As circunstâncias em que deflagrou o incêndio continuam por esclarecer. A PJ esteve no local durante o dia de sexta-feira.
Todos sabiam
Desde 2009 que esta família estava sinalizada pela CPCJ da Amadora. Os pais (38 e 45 anos) não têm actividade conhecida e vivem do rendimento social de inserção. Aceitaram a intervenção da Comissão de Menores que chegou a iniciar uma intervenção com as crianças, mas foi “sol de pouca dura”, já que a meio do processo os pais não concordaram com “as propostas” de intervenção e retiraram a autorização. Tal como diz a Lei, sem o consentimento dos pais, a CPCJ ficou impossibilitada de intervir e o caso foi remetido ao Ministério Público (MP). Sempre que há incumprimento e se mantém o perigo, o MP instaura um processo de protecção judicial que é depois avaliado por uma equipa multidisciplinar. Resta saber se o Tribunal de Família da Amadora tomou conhecimento.
À procura das crianças
A CPCJ da Amadora instaurou agora um novo processo para protecção destas crianças sobreviventes (sinalizadas em 2009 por negligência), mas como as crianças foram entregues a familiares naquela noite, a CPCJ está agora a tentar localizá-las. Diversas autoridades estão a avaliar o caso (incluindo a PJ), para apurar se se está perante um caso de “negligência grave”.
Os vizinhos
Revoltados e com medo, uns, calam-se, outros dizem que “os meninos iam para a rua brincar a altas horas, os pais não trabalhavam e andavam sempre por fora durante a noite”. Falam, mas na condição de não identificarmos quem fala. Só assim contam como Sira vivia a responsabilidade de ser a irmã mais velha. “Era ela que levava os irmãos à escola e que tratava deles.” A tvmais sabe que na escola dizem que era difícil “conseguir chegar a um contacto com os pais, pessoas muito difíceis e ausentes”, mas também no estabelecimento de ensino o anonimato é condição.
O Bairro do Zambujal
Fica na freguesia de Alfragide. É um bairro social, multicultural, com menos de 5 mil habitantes, numa zona periférica da Amadora, entre a cidade, a zona industrial e o acesso à capital. Conhecido como terra de ninguém, tempos houve em que nem os táxis lá iam. Tiros e conflitos a eito dão origem a que “polícias e autoridades das mais variadas áreas trabalham ali em stresse. Bombeiros, carteiros e outros, é tudo o mesmo”, diz-nos um sénior dos voluntários da Amadora. “É um caldo muito complicado com ciganos, africanos e brancos das mais variadas origens”, tenta explicar.