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Estou farto de o dizer a outros. Não sabemos quem somos até vivermos uma situa-
ção-limite, daquelas em que agimos quase sem pensar. Quando somos só instinto, quando a nossa natureza não tem tempo de accionar filtros, de pesar consequências. Essa acção, ou incapacidade, define-nos mais do que mil discursos. Para o bem ou para o mal. Foi numa segunda-feira, dia 10 deste mês. Chuva de temporal, pouco antes das quatro da tarde. Estou num engarrafamento, à espera de conseguir entrar na Segunda Circular. Pouco se vê para os outros carros, vidros embaciados, mas sente-se a tensão no pára-arranca, buzinadelas, tentativas de meter o carro à frente do outro. Impaciência geral. Nervosismo geral. A chuva bate tão forte que o limpa-pára-brisa no máximo não consegue afastar por completo a enxurrada. Circula-se devagar, às apalpadelas, a rezar para que o da frente não trave de repente, a rezar para que não nos batam por trás. E no entanto, numa nesga de oportunidade, num espaço que se alargou por segundos, uns metros à minha frente, uma enorme camioneta de passageiros vê a sua oportunidade. Acelera, num rugido de elefante, e avança, numa velocidade de louco para a condição da estrada. Ultrapassa como pode, faz gincana, afasta água à passagem como a comporta de uma inesperada barragem. Não sei bem o que aconteceu. Não sei se tocou no pequeno carro, se a ultrapassagem provocou uma rajada súbita, demasiado forte para o utilitário, não sei se foi o condutor do carro que se assustou e se atrapalhou. Sei que o carro deslizou pela água para a esquerda, que bateu nos rails de metal, que se levantou no ar, rodopiou, e voltou a aterrar no asfalto, de cabeça para baixo, pneus para cima. Quem nunca viu um carro a capotar à sua frente, não queira ver. É o horror do momento e o horror do que se segue. Que se passa? Quantas pessoas vão lá dentro? Que idade têm? Como estão? Não consigo pensar, é como se tivesse entrado num túnel, estou a ser sugado, só penso em guinar para a direita, procurar a berma onde possa parar o carro, puxar o travão de mão, ligar os piscas, correr o mais que posso. Reparo que o condutor de uma furgoneta fez o mesmo, neste caso, parando onde estava, quis lá saber. Corremos os dois para o carro, olhamo-nos, percebemos que não, provavelmente não saberemos o que fazer quando lá chegarmos. E neste entretanto… meu Deus, neste entretanto… vamos contando os carros que viram o mesmo que nós, e aceleram, passam ao lado, seguem a sua vida, alguns ainda nos buzinam por estarmos a atrapalhar o caminho. Ajoelhamo-nos junto ao carro, única maneira de conseguir ver para o interior. Ele percebe que o melhor acesso é por uma porta de trás, que abre e arranca como pode. Eu vejo um único ocupante. Uma. Uma mulher que não se mexe, sinto-lhe o pavor, o mundo de pernas para o ar. Reparo no pormenor de ter vestido um pólo que diz “Polícia”, este será o seu carro particular, não sei nem interessa. Só consigo gritar-lhe não se mexa, vou chamar alguém. Numa feliz coincidência, surge uma ambulância dos bombeiros, que ia noutra missão. Imediatamente saltam da ambulância e juntam-se a nós um homem e uma mulher, ela pergunta-me se já alguém ligou para o 112. É o que faço, atendem logo, felizmente, percebem logo onde estamos, felizmente. Pouco depois, parto, para não atrapalhar quem sabe ajudar. À noite, eu e a minha mulher ligamos para o hospital. Queremos saber se nos podem informar de uma senhora da polícia que teve hoje um acidente na Segunda Circular. Sim, sim, já teve alta, felizmente não sofreu nada de grave. Respiro fundo. Antes assim, antes assim. Quando recomeço finalmente a pensar, olho para trás e vejo que sou dos que param. Não sei que mais serei, mas isto sou. Antes assim.