E como sempre, a vida. A manifestar–se, a dar-nos conta que vive, nesse seu misterioso pleonasmo. Na semana passada, escrevi sobre o Europeu para escrever sobre o Rui Tovar, e assim homenagear todos os (muito poucos) que me fizeram crescer ou me ensinaram alguma coisa. De forma que tinha guardado para esta semana escrever sobre o título propriamente dito. Aquela noite, Deus meu, e todo o dia seguinte, o dia que sonhei ver um dia, os heróis a sairem do avião e a erguerem de imediato a taça, os gritos, a euforia, ainda bem que os vivi. E todo esse dia em romaria, aquela que julgávamos ir fazer em 2004 e que nos roubaram. Ia aqui agradecer quase um a um, quando mais um monstro emerge das cavernas e avança de camioneta em Nice. A primeira sensação é profundamente estranha e familiar, ao mesmo tempo. Comparando este horror com as coisas belas, ocorreu–me o que por vezes penso ao ouvir uma música que nunca tinha ouvido, mas que me entra logo no ouvido, com uma lógica tão forte, que me parece impossível nunca a ter ouvido antes, de tão familiar me soa. E penso nesses momentos: como é que nunca ninguém pensou nisto antes? Este inacreditável atentado trouxe-me, de forma arrepiante, essa mesma pergunta, e detesto-me por ter o mesmo pensamento perante uma coisa que me delicia e uma coisa que me agonia ao vómito. Mas sim, repito, arrepiado repito: como nunca tinha acontecido? Com aeroportos, aviões, comboios e estações vigiados (o mais que se pode, que nunca será suficiente) não pode agora espantar-nos que um demónio tenha pensado na mais artesanal das bombas à disposição do homem comum. Um veículo pesado, desses que vemos todos os dias a todas as horas. Depois, é só ter o diabo ao volante. Não já um homem, mas uma sombra maligna capaz de apontar, acelerar e continuar, e continuar, e continuar, sabendo que só parará quando alguém o travar. Com estes monstros, só a morte os trava. Não tenho por hábito, seja como jornalista, seja sobretudo como ser humano que se preza ainda de o ser, de ver as piores imagens destes atentados, aquelas tão gráficas que podem estragar uma vida para sempre. Sei de quem as vê, muitas vezes as procura, e desses atrasados mentais já aqui falei duas ou três vezes. Não voltarei a falar, quem procura ver resultados mais violentos dos atentados merece apodrecer no inferno junto aos monstros que fazem atentados. Sabendo que havia muitas imagens (a TV e a internet fazem questão de as publicitar), não as vi e fiz questão de não as ver. Não preciso de ver quando ouço descrições de “corpos mutilados e desfeitos pelo alcatrão, muitas crianças”. Não preciso de me confrontar todos os dias com os horrores do mundo, já bem me basta saber que existem e que está visto existirão. Do pouco que vi, ou escolhi ver, já me causa pesadelo suficiente aquele momento, aquele preciso momento que define o que referia no início deste texto. Quando um momento em tudo normal se torna o inferno, como um vilão que de repente mostra a verdadeira máscara. É o momento em que o camião está a circular devagarinho. E de repende investe com toda a força. São segundos, ou menos, em que quem está a filmar está apenas ligeiramente indignado com a falta de noção daquele condutor. Que faz aqui aquele camião enorme, isto é perigosíssimo, ainda por cima sem luzes, isto se ele não tem cuidado ainda alguém se aleija. Aqueles segundos em que estamos ainda num mundo normal, onde haverá sempre tipos mais descuidados e incautos, e nós barafustamos um pouco e depois a vida segue, e limitamo-nos depois a comentar “eh pá, hoje vi um camionista que era um anormal, a circular ali por uma rua com tanta gente à volta”. Esse momento, Deus meu, é o momento que me tira toda a falsa segurança que ainda poderia sentir, mais até do que bombas em aeroportos, esse momento em que uma cena corriqueira do dia a dia acelera, quando toda a humanidade pedia, pensava, apostaria que iria travar.
Aquele momento
Um veículo pesado, desses que vemos todos os dias a todas as horas. Depois, o diabo ao volante