Fiz uns quantos desejos para 2017, diz a superstição que terão de manter-se secretos, para que possam ter possibilidade de se realizarem. Com muita pena, deixo hoje aqui expresso, não um desejo, bem pelo contrário, mas um receio que cresce. Os primeiros dias de Donald Trump (repare que são dias, nem sequer semanas) estão a assustar-me, e à séria. Fui dando de barato que insistisse em algumas das ideias graves que propagandeou em campanha; sempre me quis parecer que seria do estilo de demonstrar ao seu eleitorado que é um homem de palavra. Mais: parece-me que quer começar por demonstrar que essa é a sua grande diferença para os políticos, essa classe que ele criticou de forma desbragada, para se colocar ao lado do povo. E, sim, não há coisa mais triste e infelizmente previsível do que ver os políticos constantemente num jogo que humilha a população e sobretudo a fazê-la passar por parva: rasgarem promessas assim que conseguem o objectivo de chegar ao poder. É indigno e insultuoso, porque é como dizer–nos que só servimos para os colocar lá em cima, e depois já não precisam de nós. Nesse sentido, nesse único sentido da verticalidade, Donald Trump até demonstra uma ética pouco habitual. Mas há um pequeno grande pormenor: é que as promessas que faz questão de levar por diante são, quase todas, perigosas. De todas suas promessas e premissas, a que mais nos ficou na memória foi, não tenho dúvida, a do muro na fronteira com o México. Esta era, para mim, aquela que funcionaria como um teste para aferir que tipo de homem vem realmente lá. Sempre imaginei que arranjaria uma forma engenhosa de voltar atrás, fazer compreender aos seus votantes que quando falou de muro estava a socorrer-se, acima de tudo, de uma enorme metáfora, dizendo depois que não vai construir o muro mas que não abdica de uma política de fiscalização e segurança muito mais rigorosa contra os clandestinos, etc., blá-blá. No essencial, a sua promessa de preocupação com o que considera estrangeiros a roubar mão-de-obra aos americanos continuaria lá, mas mostraria alguma sensatez, sobretudo um sentido prático de não avançar com uma obra que vai custar uma absoluta enormidade e será certamente uma dor de cabeça construir e manter. Mas afinal não. Foi das primeiras coisas que mandou mesmo avançar, e aqui começa a crescer o meu receio de que isto só possa piorar. Está na altura de estarmos muito, mas muito vigilantes. Bem sei que o jornalismo e os jornalistas cometeram muitos erros na campanha, e disso já aqui falei, para dar a mão à palmatória a algumas críticas que dizem que formos tremendamente tendenciosos, papel que não nos cabe. Sim, todo o jornalismo tratou Trump como uma espécie de palhaço menor, que acabaria por se esfumar na noite eleitoral. E, sim, esse tiro saiu pela culatra e deve fazer todos os jornalistas reflectirem. E, sim, estaria preparado, depois de aprendida a lição, a tratar o novo Presidente com a dignidade que merece, o que, do ponto de vista da ética jornalística, é simplesmente olhar para ele como olhamos para os outros Chefes de Estado: ou desprezamos todos, ou não podemos desprezar nenhum, e a nossa credibilidade de representarmos uma classe objectiva e responsável depende, mais do que nunca, dessa atitude. Mas, isto dito, volto um pouco ao “princípio”, e reafirmo, agora que vi como entrou nos primeiros dias, a uma ideia de que se trata do homem errado no lugar mais delicado do mundo. Os primeiros dias foram, basicamente, para fechar as mais diversas fronteiras, e isolar a América. São, sem dúvida, um dos motores do mundo, talvez o mais potente, mas grande parte desse estatuto foi concedido pelo mundo inteiro. O mundo que olha para os EUA, com todos os seus defeitos e manias de grandeza, como um exemplo de democracia. Se isso desaparece, se vemos na América um líder com tiques de ditador à moda antiga, não faço ideia do que o futuro nos reserva. Nem a nós, nem aos americanos, que provavelmente ainda não perceberam quem elegeram. Estou receoso, sim.
Rodrigo Guedes de Carvalho: Agora, o receio
Se vemos na América um líder com tiques de ditador, não faço ideia do que o futuro nos reserva.