1 – Portugal tem muitos defeitos, mas ninguém nos pode acusar de não funcionar como um relógio. Correspondemos às expectativas. Sabemos, muitos meses antes, que haverá uma terrível vaga de incêndios. Sabemos que haverá por aí espalhados uns meliantes que pegam fogo às matas e florestas. Claro que também ouvimos todos os anos os governantes anunciarem "reforço de meios", "políticas mais apertadas de fiscalização". E, claro, culparem também as "altíssimas temperaturas", também elas uma surpresa nos meses de Verão. O resultado é o que se vê. Dos milhares de incêndios, apanha-se meia dúzia de criminosos. Da meia dúzia, três (vá lá) talvez fiquem uns tempos atrás das grades, os outros são mandados para casa com uma reprimenda. Podem os governantes falar de aviões, helicópteros e outros meios, podem elogiar o trabalho dos bombeiros, que o problema manter-se-á, em lume brando: pegar fogo ao país não é crime por aí além. Dito de outra forma, não há nada na lei e na sua aplicação que assuste os incendiários. Ora quando os criminosos não têm medo do que lhes possa acontecer, está visto o que sucede. Não há, sequer, ou que se veja, uma ligação directa entre um acto "de falta de civismo" e as suas mais do que possíveis consequências trágicas. Não vimos ninguém ser acusado de homicídio (ainda que involuntário) da jovem bombeira. E, no entanto, ela morreu porque havia um fogo, mais do que certo nascido da mão criminosa de alguém, que, depois de ter levado nas orelhas do juiz, lá deverá ter voltado para a tasca aviar mais umas canecas. Fala-se sempre muito, neste e noutros casos, de atacar a "raiz do problema". Mas estará na altura de perceber que a raiz está no fim da cadeia de acontecimentos. Ou seja, na falta de verdadeiros castigos para estes criminosos. Como dizia um desesperado comandante de bombeiros numa reportagem, bem podem estar mil homens e mil carros num combate, que ali ao lado outro fogo aparecerá. Porque há quem os ateie, seja a mando de alguém ou porque é um bêbado sem nada para fazer. Enquanto um destes não alombar dez anos ou mais na prisão (consoante as consequências do que fez), podemos já marcar na agenda para o próximo Verão a previsível nova vaga de incêndios, altura em que veremos as mesmas imagens e ouviremos as mesmas declarações.
2- O caso das novas cegueiras por incúria num estabelecimento de saúde são também um espantoso exemplo da portuguesa maneira de ser e de vigiar. Puxa-se o fio à meada e percebe-se afinal que não se trata de um "acidente" isolado, mas sim de um desastre que estava há muito para acontecer. Clínica fora-da-lei, queixas semelhantes, há muito tempo, quer em Portugal, quer na Holanda…Qual é então o espanto? Se a Ordem dos Médicos tinha lá queixas anteriores, se as delegações regionais de Saúde também, porque surgem agora a determinar que é preciso uma maior fiscalização? Ah, espera, talvez seja porque o caso explodiu no prime-time das televisões e nas manchetes dos jornais. Senão, seria bem possível que continuasse escondido debaixo do tapete, como tantos outros que deverão passar-se por esse país fora. E há ainda a lata de vermos responsáveis pela área ralharem com as vítimas que não fizeram queixa, apelando a que o façam. Convém é pensarem que as vítimas que já tinham feito queixa depressa perceberam que lhes adianta pouco ou nada, como se viu. É triste quando acontecimentos tão graves e continuados só têm acompanhamento quando chegam à comunicação social. Aí já ninguém quer ficar mal na fotografia, e todos os que estiveram de braços cruzados nos garantem agora investigações rigorosíssimas e castigos exemplares. Para os que foram fazer uma intervenção cirúrgica simples e saíram de lá a caminho da cegueira, é tarde.