António Lobo Antunes, que já abordou, naturalmente, o tema em muitos dos seus intensos romances, volta a insistir que está por escrever o grande livro sobre a guerra colonial. Parece estranho de ouvir, quando vemos nos escaparates multiplicarem-se títulos sobre o assunto, sobretudo agora, a reboque dos 50 anos do início de tudo. Mas entendo perfeitamente o que quer dizer. Falta o grande romance, como falta o filme, como falta a exposição fotográfica, como falta o documentário, como falta a reportagem. A questão, aqui, não é procurar saber se há suficientes pessoas a debruçarem-se sobre o assunto. Porque, na verdade, vai havendo. A questão que Lobo Antunes levanta sempre, serenamente por baixo das suas frases enigmáticas, é assumirmos que, se calhar, esse romance, esse filme, esse documentário, não poderão nunca existir, porque parecerão sempre insuficientes enquanto houver memória real do horror. Porque às descrições faltará sempre o cheiro ou o suor do medo. Porque talvez seja (a guerra, qualquer uma, não apenas a colonial portuguesa) a mais indescritível experiência-limite que se pode atravessar na vida de qualquer um de nós. Tornou-se conhecida, ao longo dos anos, a relutância dos ex-combatentes em falar do que viram ou viveram. Ainda há pouco, não deveria haver família portuguesa onde não houvesse pelo menos um. Com o tempo, a sua presença esvai-se, e as memórias de todos ficam mais difusas; as suas histórias deixam, serenamente, de fazer parte da família, para se inscreverem numa dimensão, mais seca e abrangente, da História comum. Ora, enquanto muitos são ainda vivos, enquanto muitos tentam ainda passar-nos testemunho, convém reter esta terrível e intransponível verdade: os ex-combatentes falam pouco ou nada do que viveram, não apenas pelo receio de nos chocarem, não apenas para manterem secreto algum terrível segredo…mas porque sentem, no mais fundo de si, que não vale a pena. E não vale a pena porque não poderemos imaginar o que foi, por mais inteligentes e genuinamente interessados que possamos parecer. Dizia um ex-combatente, outro dia, na rádio: é uma dor tão grande, minha senhora, que não nos larga nunca e vai morrer connosco, e não conseguimos fazer os outros compreender. Emissão dramática e memorável, essa: a TSF escolheu como tema do seu fórum matutino as feridas da guerra. Anunciava um sem-número de inscritos para falar. Ouvi os primeiros quatro ou cinco ex-combatentes, depois não consegui mais. É demasiado impressionante. Homens que sabemos estarem já na década dos sessenta, alguns com mais idade, que ainda aguentam uns primeiros segundos a tentarem pôr de pé um raciocínio, e que pouco depois rebentam, numa arrepiante torrente de choro e nervos, incapazes de manterem aquilo a que costumamos chamar a "compostura". A guerra não pertence ao reino das palavras, que serão sempre poucas para o que se quer dizer. É assunto de vísceras e coração, pedaços intraduzíveis de nós. Poucos dias depois, de novo o assunto na comunicação social, numa espantosa Grande Reportagem da minha colega Cristina Boavida. A propósito da divulgação de imagens inéditas de uma emboscada na Guiné, conseguidas na altura por uma corajosa jornalista francesa, mais depoimentos de quem passou por lá. E, de novo, a mesma eterna sensação: estes homens não conseguem falar. Ou melhor, vivem um dilema de impossível solução. Queiram falar, mas não conseguem traduzir o que lhes vai por dentro. Há inúmeras desgraças neste mundo, e sobre todas tenho de debruçar-me, mais dia, menos dia, por imperativo profissional. Mas poucos temas me deixam tão devastado e inútil, como ver e ouvir estes homens, e perceber que atravessaram toda uma vida com um demónio a devorá-los. Em mais uma notícia de jornal, deparo-me com o milésimo título sobre as reformas milionárias de indigentes e calaceiros, que somaram tachos atrás de tachos à custa de partidos e conhecimentos. Um nojo. Se o país deve reformas milionárias é a milhares de miúdos que enviou para uma guerra que não compreendiam. E que hoje são homens dolorosamente sós, a enfrentarem o pouco que lhes resta.