É espantosa a nossa capacidade de procurarmos as coisas boas, quando nos encontramos afundados em destroços. Não, não ironizo, embora me pareça que, nessa louvável capacidade de esperança e optimismo, tendemos a confundir um pouco de tudo. A história do fado património da Humanidade é um desses devaneios, em que alguns entram, em que muitos outros se deixam arrastar. Interessa pouco se gosto ou não de fado, mas que fique claro que nem sim nem não. Do fado, sobretudo, compreendo que cause as sensações de que tanto falam, sem realmente as sentir. Também conheço pouco, é certo, e durante anos fugi dos acordes, por me parecerem ser um povo que se alegra em ser triste. Nada contra: a grande maioria dos grandes romancistas é assim. Mostrem-me um único grande romance movido apenas a felicidade e sorrisos… Há uma meia dúzia de fados que me arrepiam, duas ou três vozes que me emocionam. Não comunguei, por isso, daquela febre vitoriosa que antecipou, viveu e continuou a fazer eco da famosa campanha para fazer eleger a canção património imaterial da Humanidade. Até porque sempre antevi, e assim foi, que a coisa seria pasto fácil para aproveitamentos políticos. Nada como um prémio que parece contemplar todos os portugueses para que os políticos nos encham de discursos sobre a importância do orgulho nacional, da força dos sentimentos, da vitalidade eterna da perseverança da identidade, e por aí fora. Que melhor história para contar a um povo que conta os tostões? Mas pronto, como diria qualquer português. O fado “ganhou”, houve festa na Mouraria, os fadistas aceitaram a chuva de cumprimentos. E, naturalmente, segue-se… nada. Mas tudo bem. Só que o prémio, na natureza de um povo pouco habituado a ter vultos que os conquistem, é coisa que embriaga. Gostamos do brinquedo. Basta pensar que estamos sempre a lutar pela vanguarda de feroz concorrência que são os recordes do “Guinness”. É uma sucessão de orgulhos difícil de igualar: o maior desfile de pais natais do mundo, o maior chouriço, o maior bolo–rei. Uma lista infindável de proezas, que se alimentam umas das outras. E terá sido esta tendência para a gula de troféus que, imediatamente após a “vitória” do fado, certamente se pôs a pensar e lembrou: eh, pessoal e que tal se agora avançássemos com o cante alentejano? Isto é só uma questão de começar. Veja-se que semanas depois, a efervescência triunfal mostrou a sua costela histórica, alastrando, como uma febre, aos nossos irmãos cabo-verdianos, que viram no infeliz falecimento de Cesária Évora a sua oportunidade de entrar no jogo: siga também uma candidatura da morna a património mundial. Bom, altura para perguntar o que se segue. Pauliteiros de Miranda? As vozes esganiçadas do rancho folclórico? Ou teremos já uma comissão (há sempre uma comissão em Portugal) a estudar mais altos e arriscados voos? Porque não candidatar “aquele sentimento indizível que nos atravessa o corpo perante a majestosidade ímpar da luz do nosso pôr do Sol atlântico”? Ou talvez alguém da comissão aponte matéria mais prosaica, mas igualmente de possibilidade forte de vitória, como “a inigualável imaginação dos piropos que os nossos trolhas atiram lá de cima dos andaimes a tudo o que cá em baixo no passeio tenha saias e mexa”. Desculpem, gente, mas temos mesmo de ter calma. Porque também acho (e acabaram-se as ironias) que no ano que está a chegar temos de procurar aquele fio de vida que nos possa segurar, e que pode e deve ser orgulho, união, capacidade de olhar para o próximo e pelo próximo. Vamos precisar de reservas de energia que não se relacionem com dinheiro, sobretudo que não dependam de dinheiro, mas precisamente por isso devíamos abandonar o comportamento novo-rico que precisa do brilhinho fátuo de uma estatueta para exibir às visitas. Para 2012, desejo-nos calma, paciência, coragem. Não confundir com desistência ou passividade. Bom ano para todos.
Calma, minha gente
Para 2012, desejo-nos calma, paciência, coragem. Não confundir com desistência ou passividade