Sente-se no ar um certo regresso à normalidade, agora que na Eurovisão passámos de campeões a últimos num instante. Julgo que durante um ano se confundiram imensas coisas. Primeiro, que a vitória de Salvador Sobral inaugurara uma nova era. Que, a partir de agora, iríamos dar cartas na matéria, ser respeitados e temidos. Por outro lado, e este lado assustou-me um pouco, que afinal o Festival não era uma pimpineira, uma pirosada de fumos e lantejoulas e canções a ver quem grita mais alto. Foi assim que se viu, após a vitória de Salvador com uma canção doce que não pertencia àquele mundo, que foi lançado o desafio de participar a autores e intérpretes que não estamos habituados a ver nestas andanças. E lá vieram eles e elas, alguns a quem ouvi, em tempos, críticas ao certame. De repente, era como se Salvador Sobral tivesse transformado aquilo numa coisa séria, para música e letra a sério. Só que a água não costuma passar duas vezes por baixo da mesma ponte. E foi um pouco penoso ver e ouvir o que se apresentou a concurso nacional, o que se propunha receber a herança dos Sobral. Claro que tivemos alguns dos habituais festivaleiros. Mas tivemos também alguns, em demasia, que nunca tinham navegado naquele mar, e que se atiraram a meio-termo. Nem bem a fazerem o que costumam fazer nos seus discos nem bem a abraçar a onda que se pretende nesta coisa. O resultado foi pouco bom, para não ir mais longe. Dessa amálgama que não sabia bem por onde ir, lá ganhou “O Jardim”. E agora era esperar por outra noite de glória, porque o Festival vinha para Lisboa, e nós agora já somos candidatos entre os “melhores”. No final da noite, confesso que até eu, que esperava a derrota com estrondo, estava longe de imaginar que ficaríamos, mesmo, mesmo, na cauda das caudas. Mas acho bem, acho bom, e das desilusões e fracassos nascem luzes e aprendizagens. Estou a dizer que os outros eram muito bons e nós muito maus? Não, pelo contrário. Sempre me pareceu que a vitória de Salvador foi um fogacho que não se repetiria. Quando ele surgiu, despido de fantasias, a cantar aquilo no ano passado, lembro-me de pensar que só o último lugar nos estaria reservado. Foi o primeiro, o que não arrasa a minha teoria. Só poderia ser um destes dois. Porque era um objecto tão estranho naquela sala. Acontece que, por uma vez, os júris e os públicos decidiram pelo “patinho feio”, o que acontece muito de vez em quando. E juntaram-se votos de quem percebeu, sabe-se lá porquê, que estava ali um inesperado cisne. Não limpemos lágrimas, não nos sintamos humilhados. Se aquilo é para glorificar a inacreditável mediocridade daquela algazarra de Israel, muito “tempos modernos”, prefiro ficar em último. Há que retirar desta noite algumas conclusões, e sabem-me todas bem. A RTP ofereceu um espectáculo sem mácula, as apresentadoras foram dignas para o que daquilo se espera, e deveriam mandar àquele sítio as queixinhas sobre a qualidade do seu Inglês. Mas sobretudo de cada vez que uma voz portuguesa pisou aquele palco, desde a entrada de Ana Moura ao grande final com Salvador e Caetano Veloso, passando pela fantástica sequência de arranjos de Branko, veio-me um arrepio e um orgulho. Ficai lá com o Festival, não precisamos.
Rodrigo Guedes de Carvalho: Ficai lá com o Festival
Até eu, que esperava a derrota com estrondo, estava longe de imaginar que ficaríamos, mesmo, mesmo, na cauda das caudas.