A morte arrasta consigo questões curiosas. Há a humana sensibilidade, claro, e talvez o respeitoso silêncio que se apodera de nós, seja quem for a vítima. E até a filosófica angústia de tentar perceber onde estará agora aquele homem ou mulher, nesse sítio onde também, inevitavelmente, estaremos um dia. Mas uma outra questão se agiganta sempre, sobretudo quando falamos de alguém que, em vida, gerou tantos sentimentos diferentes. Deve a morte de alguém que detestamos fazer-nos passar a gostar dele? Ou a agir como tal, porque é mais correcto no impacto social? Inevitavelmente, a morte de alguém como Saramago faria estas questões voltarem a sair da toca. Vimos e ouvimos as vozes escandalizadas com o Presidente da República. Do votante comunista anónimo ao político mais conhecido ou activo. Louçã chegou mesmo a encarar câmaras de televisão e a fazer um apelo (ou a dar uma ordem?) directo a Cavaco Silva, do género "você livre-se de não aparecer no funeral…" Há dias em que tudo surge nublado. É humano. São os dias da morte, da revolta contínua perante a inevitabilidade do ciclo que se fecha, que se fechou sobre aquela pessoa mas sobretudo nos recorda que um dia se fechará sobre nós. É o dia da morte, do velório, do funeral. São dias maus para pensar. São dias do coração. Dias maus para fazermos juízos ou declarações definitivas. Não julgo Cavaco Silva, como não julgo Saramago. Guardarei dele uma escrita genial, que conheço, ao contrário de muitos e muitas que lhe louvam o talento mas dele leram apenas as contra-capas dos livros ou seguiram a carreira mediática. Interessa-me aquela escrita que não se repetirá, o resto importa-me pouco ou nada. Mas Cavaco Silva manteve, à distância que ambos cultivaram, uma relação ríspida e zangada com Saramago. Permitiu que os rapazes do seu governo levassem a cabo uma operação de censura que nos envergonhará sempre, e que deu a Saramago motivos legítimos de sobra para nos chamar medievais e virar as costas ao país. Porque é bom não esquecer que, para o bem ou para o mal, os governantes que escolhemos representam-nos. Emigrado na árida Lanzarote, com o peito a inchar de tanto prémio, comenda e elogio, Saramago também não se fez rogado no jogo. Contra-atacou em força. Disse muito de muita gente, mas lembro que de Cavaco Silva procurou o que de pior poderia dizer, de ignorante, limitado e estúpido para baixo. Tratou sempre de o tratar com aquela soberba que só os artistas conseguem, sobretudo quando sentem o peso do mundo deitado aos seus pés de génio. Era esta a relação entre dois homens que nunca se cruzaram em vida: odiaram-se à distância, sem disfarces. Por isso, lamento, não me faz qualquer impressão a ausência de Cavaco Silva no momento do funeral. Sobretudo porque tratou atempadamente de fazer o mínimo que o cargo exigia: a mensagem de condolências, a coroa de flores, o representante da sua Casa Civil. O resto é…coerência. A mesma que certamente teria Saramago. Quanto aos gritos de escândalo dos líderes de esquerda, que aproveitam qualquer oportunidade para fazer política, precisamente com o discurso de que não é altura para fazer política, gostaria de os ter ouvido (só para saber se o respeito pela morte é sempre igual) quando militantes comunistas e socialistas festejaram nas ruas o acidente que acabara de matar Sá Carneiro e mais meia dúzia de portugueses. Eu tinha 17 anos e nunca esquecerei. E desde essa demonstração de bestialidade movida apenas a ódio político, deixei de dar muito crédito a políticos que apelam a sentimentos.
Capas
|As Incoerências da Morte
Por uma questão de coerência, não me fez qualquer impressão a ausência de Cavaco Silva no funeral de Saramago; dois homens que nunca se cruzaram em vida e se odiaram à distância, sem disfarce