Se as imagens do julgamento não mostrassem que a audiência aconteceu via videoconferência, era fácil pensar que este caso aconteceu em 1970. O empresário André de Camargo Aranha foi absolvido da acusação de violação da jovem de 23 anos Mariana Ferrer, na segunda semana de setembro de 2020, depois de a promotoria argumentar que o réu não teve a intenção de cometer o ato de violência. O advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho apresentou fotografias de Mariana partilhadas nas redes sociais e humilhou a jovem: “Essa foto foi extraída de um site de um fotógrafo onde a única foto chupando o dedinho e em posições ginecológicas é só a dela”. O caso foi tornado público por uma reportagem do “The Intercept Brasil”, que gerou uma onda de manifestações nas redes sociais.
Celebridades como Bruna Marquezine, Xuxa e Juliana Paes fizeram questão de partilhar nas redes sociais a indignação pelo comportamento do juiz, do promotor e do advogado de defesa, e a frase “não existe estupro culposo” inundou as publicações. “Foto sensual não é convite para estupro”, escreveu Anitta, no Instagram.
Entenda o caso
A modelo e promotora de eventos Mariana Ferrer alega ter sido violada numa festa num beach club em Florianópolis, Brasil, em dezembro de 2018. Na época com 21 anos, a jovem era virgem, o que ficou provado através de exames periciais realizados no dia seguinte ao ocorrido. Imagens de videomonitoramento mostram a jovem a subir as escadas da discoteca acompanhada de André de Camargo Aranha. Mariana acredita ter sido dopada, porque afirma não lembrar do que aconteceu depois que subiu as escadas.
O acusado foi ouvido em maio de 2019, quando disse que não teve qualquer contacto com Mariana. Já num depoimento posterior, Aranha admitiu ter feito sexo oral na jovem. Um exame identificou o DNA de Aranha no material genético colhido nas roupas usadas por Mariana na noite do alegado crime.
Os depoimentos da mãe de Mariana e do motorista de Uber que a levou para casa, junto das mensagens “desconexas” enviadas às amigas depois do ocorrido, corroboraram com a tese de que a jovem estava sob o efeito de álcool ou drogas, apesar dos exames toxicológicos não constatarem o consumo de tais substâncias.
“Estupro culposo”
Em julho de 2019 o promotor Alexandre Piazza apresentou a acusação de violação de vulnerável, considerando que por estar sob efeito de substâncias, Mariana não poderia consentir com o ato. Porém o promotor deixou o caso e foi substituído por Thiago Carriço de Oliveira, que teve outro entendimento do caso. Para o promotor, não havia provas suficientes para afirmar que Aranha sabia que Mariana não tinha condições de consentir.
Na análise jurídica do caso, o promotor afirma que houve “erro sobre o elemento constitutivo do tipo legal”. Thiago Carriço de Oliveira justifica que Aranha não tinha consciência que Mariana não podia consentir e comparou o facto do réu não identificar que a jovem estava embriagada com casos em que violadores não identificam menores de 14 anos pelo “físico avantajado”. “Se a confusão acerca da idade pode eliminar o dolo, por que não aplicar a mesma interpretação com aquele que mantém relação com pessoa maior de idade, cuja suposta incapacidade não é do seu conhecimento?”, escreve o promotor.
Pela lei brasileira uma pessoa ainda pode ser punida por um crime mesmo cometido sem dolo, ou seja, sem intenção. O termo jurídico usado para dizer que alguém cometeu um crime sem a intenção é “culposo”. Porém, a violação não se encaixa nesta tese. Por este motivo, foi recomendada pelo promotor do caso a exclusão de punição, ou seja, a absolvição de Aranha. É daí que surgiu o termo “estupro culposo”, que inundou as redes sociais na noite da última terça-feira, 3 de novembro, apesar de na sentença o juiz reconhecer que tal crime não existe, e afirmar que absolveu o réu por “ausência de elementos probatórios capazes de estabelecer o juízo de certeza, mormente no tocante à ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência”.
Advogado vai ter de prestar esclarecimentos
Para além da argumentação jurídica por um crime que não existe, a defesa de André de Camargo Aranha usou o caminho da desmoralização da vítima. O advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho mostrou fotografias de Mariana feitas antes da alegada violação e afirmou que a jovem estava em “posição ginecológica”. O advogado ainda disse que “pede a Deus para que o filho não encontre uma mulher” como Mariana.
Gastão também abordou outros temas do passado de Mariana na tentativa de desqualificar a jovem: “Tu trabalhavas num café, perdeste o emprego, estavas com o aluguel atrasado 7 meses, eras uma desconhecida… Vives disso! Isso é o teu ganha pão, não é Mariana?” O juiz Rudson Marcos limitou-se a perguntar se Mariana queria fazer uma pausa para se recompor e beber água, apesar dos pedidos da jovem: “Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”
A Ordem dos Advogados de Santa Catarina emitiu um comunicado no qual diz que já pediu esclarecimentos a Cláudio Gastão da Rosa Filho. “Os processos disciplinares tramitam no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SC e são sigilosos até o seu término, na forma da lei vigente.” Já o Conselho Nacional de Justiça do Brasil está a apurar a conduta do juiz, Rudson Marcos.
O Senado brasileiro também aprovou um voto de repúdio ao juiz, ao promotor e ao advogado de defesa do caso, e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, criticou a atuação dos três através do Twitter: “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”.
O Ministério Público de Santa Catarina emitiu uma nota a afirmar que o réu foi absolvido por falta de provas, não por “estupro culposo”, e afirma que o promotor Thiago Carriço de Oliveira “interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo.”