Correndo o risco de soar politicamente incorrecto, quer-me parecer que há demasiado falatório a rodear o bullying.
Como tanta gente por esse mundo fora, também andei na escolinha e no liceu (secundário, para os mais novos) e sempre houve rufias que faziam a vida negra a miúdos mais frágeis. O meu primeiro espanto é, pois, a revoada de indignação e surpresa que por aí corre, como se estivéssemos perante um fenómeno totalmente novo, que apanha a sociedade desprevenida. Mas é assim que nos tem chegado. E como sempre que a sociedade é apanhada desprevenida, chamam-se, aos magotes, os novos magos do comportamento, os pelotões de psiquiatras e psicólogos. Doutor, como se explica isto? Doutora, como se pode prevenir aqueloutro? Pobres das gerações anteriores, quando os doutores da psicologia pouco contavam: tinham de se aguentar à bronca e crescer à pressa. Curiosamente, muitos dos que tiveram de atravessar infâncias e adolescências sem esse tipo de apoio, explicação e contexto, parecem-me hoje adultos muito mais sólidos, capazes e independentes do que muito miúdo que já apanhou a psico-dependência em que tanto paizinho depositou a esperança de redimir as suas falhas, ausências e demais traumas que nos convencem que temos. Não tenho ouvido todas as explicações dos doutores sobre o "fenómeno" (hoje tudo é um fenómeno), mas já apanhei a lengalenga que nos canta o desenquadramento económico-social-psicológico-emocional dos coitadinhos dos perpetradores. Não deixa de ser curioso que a sociedade moderna arranje sempre maneira de nos convencer que há sempre duas vítimas diferentes num crime: os que sofrem a sevícia, vá lá, mas também os que a praticam, para quem há sempre uma palavra de compreensão. Se é assim no mundo adulto da justiça, porque não haveria de ser entre os mais jovens, taditos, ainda em formação e confusão emocional?
Por mim, no meio da poeira de conceitos, explicações e justificações que rodeia os ritos mais simples e antigos, continuo convencido de coisitas mais simples: há pessoas que são umas bestas, e que começam a demonstrá-lo bastante cedo. E não, a idade, a tenra idade não explica tudo. Ou melhor, explica que já há o embrião de uma grande besta na pequena besta. Todos fomos crianças, claro, e certamente todos fizemos as chamadas traquinices. Todos escorregámos numa ou outra asneira, todos cometemos erros, todos olhamos por vezes com dificuldade para parvoíces que protagonizámos. Uma desobediência aqui, uma mentira acolá, um gesto de teimosia e desafio irreflectido acoli. Mas, desculpem lá, nem todos fomos capazes de afogar gatinhos, atirar cães vadios de viadutos ou perseguir outros miúdos, bater-lhes semanas a fio, humilhá-los, deixar-lhes marcas, e repetir, repetir, repetir vezes sem conta os mesmos gestos de violência desbragada. Os meus filhos já passaram a idade, mas posso garantir que se alguma vez soubesse que o meu filho era um agressor, teria uma boa dose de bullying à espera em casa. O bullying não é mais do que a experimentação selvagem do poder físico selvagem que exercemos sobre os outros. E quem começa a experimentá-lo desde cedo estará certamente no bom caminho para se tornar uma besta em adulto, com especialização, talvez, em agredir lingrinhas no trânsito ou bater em mulheres (especialidade em expansão em Portugal). Algo me diz que não adiantará muito grandes discursos sobre o Bem ou Mal com as pequenas bestas. Elas sabem que fazem mal (ou não lhes daria grande gozo). Mas talvez esteja na altura de a sociedade não permitir que as pequenas bestas e respectivas famílias que escolham fechar os olhos nos tenham a todos como reféns. E se só houver uma linguagem que entendem, entendamo-nos com ela.
Capas
|De Pequena a Grande Besta
Há pessoas que são umas bestas e começam a demonstrá-lo desde cedo. e não, a tenra idade não explica tudo.