1. À hora dos telejornais, claro, José Sócrates surge ao país de pequeno papel na mão. Vem reagir ao resultado final (?) da investigação do famigerado caso Freeport. Está sereno, naturalmente, e avança seguro para dizer o que qualquer um de nós adivinhava: que fica assim provado que não teve nada a ver com o assunto, que todos nós fomos injustos na ideia maquiavélica que fomos fazendo dele, que não nos deveria ter merecido tanta desconfiança e notícia, e, acima de tudo, está feliz porque a justiça funciona. Já dou de barato que qualquer suspeito considere que a justiça funciona ou é uma vergonha consoante a dita diz se somos inocentes ou culpados; é da humana condição moldarmos visões do mundo ao que nos convém. De uma estricta natureza do desejo, não queria que Sócrates fosse culpado ou inocente. Pouco me importa. Importa-me,sim, que ao dizerem-me que fulano ou sicrano é inocente ou culpado, me façam demonstração pouco menos que inequívoca. Ora o caso Freeport foi tudo menos isto. Foi e é um novelo cada vez mais confuso, que anuncia o fim de um equívoco com a instauração de outro. Sócrates diz-nos que a Justiça o ilibou. Mas logo no dia seguinte a Justiça revela que nem sequer lhe perguntou nada. Tinha 27 perguntas arrumadinhas, mas não as colocou ao primeiro-ministro "porque não houve tempo para tal". Dividido entre palhaçada e tristeza, faltam-me palavras para perceber. Mas parece-me inegável que não se pode cantar vitória sobre um jogo que não se jogou. Que Sócrates admire uma Justiça que não teve tempo para o ouvir, compreende-se. Que nos diga que ficou provado que é impoluto e que não quer ouvir falar mais do assunto (pudera!…) é algo que já me escapa.
2. A morte de António Feio enche-me de profunda e sincera tristeza. Carrego uma costela pessimista perante o cancro, depois de já ter assistido a muitas lutas perdidas. Confesso que tremi quando ouvi, há cerca de ano e meio, o actor anunciar que sofria da doença mas que estava convencido que a iria vencer. Já o ouvi a muita gente, inclusive a uma colega de profissão por quem tinha grande ternura e que durante anos trabalhou na secretária ao meu lado. Desde essa experiência de desencanto dorido que desconfio da nossa capacidade de fazer frente a esse animal terrível e silencioso que um dia nos começa a devorar por dentro. Por outras palavras: eu pressentia que António feio não venceria a mais difícil batalha da sua vida, o que não me impede de achar admirável a forma como a encarou. Nenhum de nós, absolutamente ninguém que não tenha passado pelo mesmo, será capaz de imaginar o medo de uma vida a prazo. Feio foi livre de gerir a sua caminhada para a despedida. Escolheu fazê-la, em grande parte, na praça pública, onde viveu tantos anos. Mas do outro lado, de quem gere esse espaço público (jornais, televisões, agentes culturais) deveria ter havido o que raramente há: sensibilidade e bom senso. Sob o signo de "homenagem", chamou-se demasiadas vezes António Feio ao palco. Sob a máscara de "um exemplo de coragem que deverá iluminar muitas pessoas que sofrem do mesmo mal" interrogou-se o actor, espremeu-se o último sopro de vida em directo. Com quase um quarto de século de comunicação social, já não me iludo. Se não houvesse a perspectiva de um resultado (uma audiência), António Feio não teria tantos convites para nos descrever o seu torpor ou deixar a sua mensagem. Que ele o tenha aceitado fazer, será por razões que morreram com ele e que devemos ter pudor de interrogar. Por mim, fica apenas isto: desapareceu um homem bom. E já há tão poucos para respeitar ou acarinhar.