Disse-me uma vez um médico conceituado e experiente, cuja perícia salvou milhares de vidas ao longo de décadas: “À medida que avanço, cada vez mais me convenço que os médicos, meu caro, não sabem nada de medicina”. Imediatamente, nessa mesa de convivas ao fim da noite, os mais jovens ruborizaram. Pelo médico, certamente. Seria possível ouvir aquilo? Admissão imprudente de incompetência? As almas mais velhas, pelo contrário, e serenamente, sorriram. Sim, compreendo. Voltemos aos mais novos: como é possível, que alarvidade de declaração. Então a medicina, uma das filhas mais dilectas da ciência, diminuída de forma tão gratuita por quem jurou servi-la? Então e as descobertas, as curas, as fórmulas mil vezes testadas nos laboratórios? Pausa, digo eu. E tudo o resto que a medicina ainda tacteia, todo o resto que continua a levar milhões de vidas sem que nada se consiga fazer? Acontece que este médico me merece, talvez, mais confiança do que todos os outros cheios de certezas absolutas. E os cemitérios estão cheios de pessoas que confiaram na soberba e vaidade de médicos de certezas absolutas, que julgaram, num qualquer ponto da vida, não ter mais nada a aprender. E, ainda assim, é verdade que medicina se faz, progressivamente, de matéria absolutamente comprovável. Mas então o que dizer da televisão, no que respeita a dogmas e certezas absolutas? Continuo boquiaberto, após 26 anos de profissão, quase 20 dos quais a esfregarem-me na cara audiências e resultados e comparações. Continuo boquiaberto por continuar a encontrar, entre os meus pares, tanta certeza absoluta, tanta fórmula, tanto estudo de comportamento de audiência. Continuo espantado com as certezas dos que sabem (dizem saber…) o que “resulta” melhor, o que “vende” mais, o que se deve pôr no ar à hora X, porque o “auditório” é composto das classes não-sei-quê, mais feminino que masculino, com idades entre tantos e tantos. Uma pergunta: quem sabe tudo isto, com toda a certeza, não deveria vender o segredo à mais rica televisão do mundo e passar a reforma a beber daiquiris nas Bahamas? Sejamos claros, e, sobretudo, honestos. À medida que avanço, cada vez mais me convenço que os profissionais de televisão, meus caros, pouco ou nada sabem de televisão. Quanto mais os treinadores de bancada, comodamente sentados no sofá, detectando rapidamente os erros, mas um pouco mais lentos a apontar soluções. Significa isto, então, que somos todos maus profissionais e críticos irrelevantes? Obviamente que não. Temos, felizmente, um grande número de profissionais dedicados, empenhados, e experientes. E tanto mais experientes e profissionais serão quanto forem sérios. Sinceros consigo próprios e com os espectadores. Admitirem, de uma vez por todas, que pode bem acontecer atravessarmos toda uma carreira de décadas sem perceber bem o que é isso do “auditório”. Porque o nosso profissionalismo não depende, ou não deveria depender disso. De acertar, todos os dias, nessa autêntica lotaria. E um jornalista de televisão que faça… jornalismo, deve sentir orgulho nisso, seja qual for o resultado. Porque a nossa divisa deve continuar a ser, como se ouvíssemos alguém que colocou a mão na Bíblia jurar ao juiz, dedicarmo-nos à verdade, toda a verdade, e nada mais do que a verdade. O resto, do que “vende”, do que “resulta”, não se cansem mais: nunca o saberemos. E por uma razão simples: a grande maioria dos espectadores não age racionalmente a ver televisão, não age sempre da mesma forma, não se sente necessariamente interessada pelos mesmos assuntos uma vida inteira, ou sequer seis meses. É tudo, mas tudo, tão falível e tão quebradiço, e tão indecifrável nesse estranho mundo dos “espectadores”, que deveríamos assumir a humildade que tanto falta, a humildade que deveria levar-nos… não ao encolher de ombros, mas ao seu contrário, o enigma aguçar-nos a curiosidade de continuar a tentar perceber, a tentar perceber, a tentar perceber mesmo sabendo já que nunca entenderemos porque é que o que “funciona” já não funciona na próxima semana. E esse, meus caros, é um dos encantos desta profissão, por contraditório que possa parecer. E por isso, quando ouço e volto a ouvir alguém proclamar que “se eu pegasse naquilo tinha a fórmula que não falha”…sorrio, serenamente. Como qualquer alma velha que já ouviu isto em qualquer lado.
Nota: Por vontade do autor, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico