RTR2PRMA.jpg

Do caos de imagens e sons dos motins de Londres, ficou-me na memória um particular discurso de revolta. Curiosamente, não uma revolta que fizesse coro com as “razões” dos saqueadores, mas precisamente o contrário. Uma mulher, de alguma idade, que pelas roupas e atitude se percebe ser também (uma verdadeira) deserdada da sorte, grita numa esquina. À sua frente, correndo desenfreados, os mais variados assaltantes, encapuzados, vão passando com os mais diversos objectos: pequenos plasmas, computadores, máquinas fotográficas, roupas de marca, bebidas. O que se queira. A mulher grita–lhes, e nem um ousa fazer-lhe frente. E grita-lhes, dizendo o que há a dizer, com franqueza maior do que qualquer analista político-social. Diz-lhes que o que vê não é nenhuma contestação, nenhuma luta por direitos, nehum gesto de indignação pelas condições económicas; apenas roubo puro, criminalidade à solta, selvajaria, saque. E lembra-lhes, em palavras mais directas e mais curtas, que o que estão a fazer só irá virar-se contra eles, e, sobretudo, dar uma péssima ideia da chamada “revolta social”. O mais curioso e dramático é que, mais do que nunca, é natural e compreeensível que uma significativa percentagem da população (já não só os pobres, mas os que correm o risco de o ser em breve) sinta uma raiva crescente, uma impotência sem igual, uma ausência total de luz no futuro próximo. Somos bombardeados com notícia de pavor sobre a Economia, que tanto parece estar a melhorar um pouco, como a seguir se precipita ainda mais numa escuridão que ninguém consegue explicar em toda a sua dimensão; juros das dívidas, agências de rating, perigos de insolvência, a cada minuto esperamos a confirmação oficial de que o mundo, tal como o conhecíamos, acabou. Terminou. Chegou ao fim. E se ninguém sabe realmente explicar o que se passa, como chegámos aqui, e, fundamentalmente, como havemos algum dia de sair, é compreensível que um desespero sem nome tome conta dos cidadãos que julgavam ser suficiente trabalharem honestamente para levarem uma vida tranquila. Parece que não. Não há dia em que um governante qualquer, numa qualquer parte do mundo, nos venha dizer que não chega, que ainda não chega, que teremos de fazer mais sacrifícios, e ainda mais, e a cada discurso sobre as medidas duras que vão ter de tomar (e que nós pagaremos), logo nos avisam que esse aviso não foi o último, que muito mais há-de vir por aí, por isso é bom estarmos preparados. Ou seja: não conseguimos, por mais que tentemos, ter a cabeça fora de água para respirar por muito tempo. Mas não é solução, ou boa publicidade para a causa, que a “contestação” dos povos sufocados se faça com meros exercícios de criminalidade sem sentido, que só virá dar razão aos que lamentam que a “juventude” esteja perdida, numa crise de valores sem precedentes. Foi certamente a pensar na dimensão dos distúrbios de Londres que Passos Coelho apelou, no fim-de-semana de 13 e 14, à “tranquilidade social”, pedindo mesmo a ajuda dos parceiros sociais, nomeadamente dos sindicatos, para que não alimentem movimentações de rua. Uma coisa é certa: nas mãos de um empréstimo internacional de pagamento pesado, que nos vigia e nos constrange a cada dia, seria uma péssima imagem de Portugal os nossos credores verem, de repente, o País pegar fogo. Sim, por aí o apelo é lógico. Mas é angustiante como todas as circunstâncias se conjugam num mesmo sentido: de aprisionar e calar revoltas antes mesmo de elas eclodirem. E há um pormenor a que os portugueses parecem estar cada vez mais atentos: que há medidas duras a aplicar, ninguém duvida, e não é por aí que faltará “solidariedade” com o Governo. Mas todos percebemos também, e cada vez melhor, que os anúncios das medidas são sempre muito específicos e rápidos quando se trata de nos vir buscar mais e mais impostos, de nos apertar mais e mais o cinto, aos cidadãos honestos que não têm como fugir do fisco, e muito lentos e nada concretos quando se trata de falar da famosa despesa pública. O tal contributo do Governo que todos esperamos também, para podermos sentir que não somos de facto os únicos, mais uma vez, a pagar a crise. Repare que em duas intervenções, uma do ministro das Finanças, outra do primeiro-ministro, foi dito que a despesa pública está também a ser tratada… Como? Quanto? Em quê? Você percebeu? Eu, não.

Nota: Por vontade do autor, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico

Palavras-chave

Relacionados

Mais no portal

Mais Notícias

Catarina Miranda quer substituir Cristina Ferreira na TVI e recebe alerta: “Ela vai sentir-se ameaçada”

Catarina Miranda quer substituir Cristina Ferreira na TVI e recebe alerta: “Ela vai sentir-se ameaçada”

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

Milan Design Week: conheça 12 das principais novidades

Milan Design Week: conheça 12 das principais novidades

O que é a teoria dos seis graus de separação, e que ligação tem ao ator Kevin Bacon?

O que é a teoria dos seis graus de separação, e que ligação tem ao ator Kevin Bacon?

Energia para Mudar: Açores a caminho da independência energética

Energia para Mudar: Açores a caminho da independência energética

A FeLiCidade faz-se ao som de música, cinema e literatura no CCB

A FeLiCidade faz-se ao som de música, cinema e literatura no CCB

Quis Saber Quem Sou: Será que

Quis Saber Quem Sou: Será que "ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais?"

Formula E mostra Gen3 Evo: 0 aos 100 km/h em menos de dois segundos

Formula E mostra Gen3 Evo: 0 aos 100 km/h em menos de dois segundos

Luís de Freitas Branco: Os primeiros acordes da revolução

Luís de Freitas Branco: Os primeiros acordes da revolução

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

ESG Talks percorrem o País e chegam a Faro a 23 de maio

ESG Talks percorrem o País e chegam a Faro a 23 de maio

Zendaya surpreende com visual ousado

Zendaya surpreende com visual ousado

Exame 480 - Maio de 2024

Exame 480 - Maio de 2024

Toca a dançar!

Toca a dançar!

O regresso ao primeiro emprego, na Exame de maio

O regresso ao primeiro emprego, na Exame de maio

O que é o REV que vai passar a ser obrigatório em todos os carros já a partir de julho

O que é o REV que vai passar a ser obrigatório em todos os carros já a partir de julho

Montenegro diz que

Montenegro diz que "foi claríssimo" sobre descida do IRS

IRS: Este é atualmente o prazo (e o valor) médio dos reembolsos

IRS: Este é atualmente o prazo (e o valor) médio dos reembolsos

Sexo na gravidez:

Sexo na gravidez: "Manter-se sexualmente ativa é uma coisa boa para ajudar no processo de nascimento"

Caras conhecidas atentas a tendências

Caras conhecidas atentas a tendências

8 modelos de sapatos para usar com calças de ganga

8 modelos de sapatos para usar com calças de ganga

Em “Cacau”: Cacau recusa casar-se com Marco

Em “Cacau”: Cacau recusa casar-se com Marco

O Porto já tem um Time Out Market. Saiba o que lá vai encontrar

O Porto já tem um Time Out Market. Saiba o que lá vai encontrar

Os

Os "looks" de Zendaya na promoção de "Challengers", em Nova Iorque

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

Portugal na Feira do Livros de Buenos Aires

Portugal na Feira do Livros de Buenos Aires

Quatro vozes da língua portuguesa, de Machado de Assis a Maria Andresen

Quatro vozes da língua portuguesa, de Machado de Assis a Maria Andresen

Mariana Patrocínio passeia por Londres em família

Mariana Patrocínio passeia por Londres em família

25 peças para receber a primavera em casa

25 peças para receber a primavera em casa

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

Exame Informática nº 346, maio

Exame Informática nº 346, maio

15 sugestões de penteados fáceis para quando faltam as ideias

15 sugestões de penteados fáceis para quando faltam as ideias

Tempo de espera para rede de cuidados continuados aumentou em 2022

Tempo de espera para rede de cuidados continuados aumentou em 2022

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Prepare a mesa para refeições em família

Prepare a mesa para refeições em família

Em “Cacau”: Simone ameaça Cacau e vira-a contra Regina

Em “Cacau”: Simone ameaça Cacau e vira-a contra Regina

5 peças de roupa que mulheres baixas devem evitar

5 peças de roupa que mulheres baixas devem evitar

De férias, Demi Moore deslumbra ao lado das filhas

De férias, Demi Moore deslumbra ao lado das filhas

Passatempo: ganha convites duplos para 'IF - Amigos Imaginários'

Passatempo: ganha convites duplos para 'IF - Amigos Imaginários'

Tarifário da água no Algarve abaixo da média nacional é erro crasso -- ex-presidente da APA

Tarifário da água no Algarve abaixo da média nacional é erro crasso -- ex-presidente da APA

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

JL 1398

JL 1398

Regantes de Campilhas querem reforçar abastecimento de água e modernizar bloco de rega

Regantes de Campilhas querem reforçar abastecimento de água e modernizar bloco de rega

Serenella Andrade: “Brincava na rua com os netos do Marcello Caetano”

Serenella Andrade: “Brincava na rua com os netos do Marcello Caetano”

Azores Eco Rallye: as melhores fotos do Peugeot e-308 da Exame Informática

Azores Eco Rallye: as melhores fotos do Peugeot e-308 da Exame Informática

XB-1: Avião supersónico já tem 'luz verde' para quebrar a barreira do som

XB-1: Avião supersónico já tem 'luz verde' para quebrar a barreira do som

Samsung lidera mercado de smartphones no primeiro trimestre de 2024

Samsung lidera mercado de smartphones no primeiro trimestre de 2024

Portugal faz bem: Margarida Lopes Pereira cria objetos a partir de esponja reciclada

Portugal faz bem: Margarida Lopes Pereira cria objetos a partir de esponja reciclada