Leio num jornal que Michelle Obama foi a uma gala de prémios de música juvenil “vestida de forma casual”. A primeira-dama norte-americana não é a única que merece notícia por causa de proeza semelhante. As revistas da “especialidade” cor-de-rosa mantêm um contínuo, extraordinário e incompreensível espanto com os momentos em que as estrelas descem à terra. Cindy Crawford olha para uma montra, e atrás dela passam transeuntes. Michelle Pfeiffer compra um cachorro-quente para a filha no meio de um parque, e, imagine-se, veste uns jeans. Javier Bardem e Penélope Cruz levavam sacos de compras na mão e entraram num McDonalds. São apenas alguns exemplos do que merece referência em jeito de notícia, e profusão de fotos a acompanhar, para que o leitor-cidadão-comum–anónimo possa ter a certeza, a prova cabal de que é mesmo verdade: há estrelas que circulam por aí, entre nós. Ora, se isto já me parece absurdo e descabido com personalidades que têm realmente uma dimensão global, imagine-se quando transferimos estas “notícias” para a nossa pequenina aldeia portuguesa. É folhear revistas: Dalila Carmo, atriz, “apanhada” de manhã, sem maquilhagem, a chamar um táxi. Paulo Gonzo, cantor, numa esplanada com uma amiga, a beberricar uma cerveja, rodeado (imagine-se) de pessoas perfeitamente “normais”. Depreendo que se as revistas continuam a dar destaque a estes “acontecimentos” é porque saberão que os leitores também lhes dão. Dito de outra forma, estas “notícias” têm público. Logo, o público também acha digno de registo estes e outros momentos. Mas qual é o espanto? No meu caso, nem preciso de ver isto nas revistas, tantas são as vezes que experimento ao vivo esta “admiração”. Poderia dar dezenas de exemplos, mas fico-me por um: estava um dia na fila de um supermercado, quatro ou cinco pessoas à minha frente. Esperava pacientemente. Dois jovens, dos seus 20 anos, estavam antes de mim. Conversavam animadamente, com gestos rápidos e inquietos, como é próprio da idade, até que um deles repara em mim, ali mesmo, juntinho a eles. Acotovela o companheiro. Diz-lhe “já viste quem ele é?”. Assim mesmo, nas minhas barbas, que o cidadão “anónimo” continua a julgar que as figuras públicas sofrem de surdez. O outro diz que não, não está a ver. Então o primeiro elucida: “É aquele jornalista do telejornal da SIC”. O outro resolve tirar a limpo, olha para mim como se eu não o pudesse ver ou ouvir, e discorda, peremptório: “Não é nada”. “É ele, estou-te a dizer”, reforça o primeiro. E é então que o outro explica porque não posso ser eu: “Não é nada, então o homem andava aqui às compras como nós?” Momentos como este trazem consigo uma epifania que nenhuma outra reflexão consegue. E, antes de mais, demonstram como as revistas têm razão. Se realmente “fosse eu” que ali estivesse, isso seria notícia para os dois rapazes. E esta será, julgo eu, uma das principais razões para que tanta gente ande a tentar, das formas mais ínvias e preguiçosas, tornar-se “famoso”. Estarão convencidos, não me restam dúvidas, de que uma notoriedade pública os afastará para sempre das acções mais comezinhas das vidinhas anónimas. E é a prova, mais uma vez, de que já não existe a ambição de se ser bom ou original numa determinada área, o que nos torna famosos, mas, sim, ser-se famoso porque sim, independentemente do que possamos valer ou ter para dar ou para dizer de novo. A julgar pelo raciocínio que naqueles segundos se desenrolou diante dos meus olhos e ouvidos, uma das vantagens que aqueles jovens julgarão assistir ao “jornalista do telejornal da SIC” é não ter de sair de casa para ir às compras, e muito menos “misturar–se” com os comuns mortais. Não só é um raciocínio incompreensível como revela o lado mais patético e medíocre do sistema. Tenho más notícias, rapaziada. Não só a esmagadora maioria das “figuras públicas” precisa também de fazer compras como não faz sentido que ter uma profissão que nos dá notoriedade nos afaste da vida de todos os dias. Mas isso depois também diz respeito a cada um. Aqueles miúdos, pelo que vejo, assim que se vissem famosos, tratariam de arranjar quem fosse por eles ao supermercado. Talvez para não se “misturarem”. Sem se aperceberem que estão assim a atribuir-se a si próprios um estatuto de menoridade que não faz qualquer sentido. Mas tem toda a gente deste mundo de ser “conhecida”? E (embora haja espécies muito diferentes) em que é que são os famosos mais do que os outros?
Eles andam entre nós
Não faz sentido que ter uma profissão que nos dá notoriedade nos afaste da vida de todos os dias