Exmos srs. governantes de hoje, ontem e, muito provavelmente, de amanhã: chega, por favor. Basta de rodeios e floreados de retórica, de teorias economicistas, de justificações com os mercados e as agências internacionais, de pedidos pungentes de compreensão para as medidas adamastónicas e selvagens, em nome da solidariedade nacional, e até porque a crise atravessa o mundo inteiro, e mais não sei o quê. E basta, porque nos bastam os exemplos, praticamente semanais, que nos demonstram que não, não bastarão os nossos sacrifícios, que não bastará que muitas famílias percam a casa, ou tirem os filhos do colégio, ou abandonem o carro e passem a andar a pé, ou digam aos filhos que nem todos terão dinheiro para frequentar um curso superior. E não bastarão nunca enquanto continuarem a surgir, das catacumbas dos segredos bem guardados, as Parques Escolares das nossas vidas. É a mais recente, não é a única, aposto que não será a última. Mas é, mais uma vez, absolutamente extraordinária a desfaçatez, e a capacidade de gastar à tripa-forra o que temos e o que não temos. Sim, nós, incautos e indefesos pagadores de impostos, que somos nós que pagamos aquilo e pagaremos o buraco gerado. E neste país, senhores governantes, onde a cada dia nos pedem mais um pouco, e mais um pouco, e só mais um bocadinho, enquanto a gasolina sobre em flecha, nos carregam nos impostos, nos sobem o IVA do restaurante onde costumávamos jantar de vez em quando, onde sobe o litro de água, e o sabonete, e a margarina, neste país onde tudo isto se passa somos confrontados, a uma cadência assustadora, com alguns “desvios” orçamentais. Alguns? Não me lembro é de obra pública que apresente contas limpas, dinheiros contadinhos, prazos e custos como constava do papel original. Esta da Parque Escolar, mais os seus milhões que voaram ninguém sabe para onde, nem para fazer o quê, e que ninguém há-de reaver (não tem problema: sobem-se mais uns impostos), é, de facto, e mais uma vez, extraordinária. São buracos de milhões, derrapagens de centenas por cento. E são contas tão altas, e tão disparatadas, e tão escandalosas… que tiram qualquer capacidade de reacção ao povo. Como ouço hoje um cidadão que vai pôr gasolina e a repórter pergunta: sabia que o litro subiu mais uma vez e que estamos hoje com o preço mais alto de combustível de sempre? Pois, responde o senhor, rosto imperturbável na desistência, que se há-de fazer, já estávamos à espera, isto agora vai ser sempre assim, sempre foi. É com esta mesma apatia que recebemos as notícias da Parque Escolar, ou das estradas que custaram mais 500 por cento, ou das pontes e barragens que foram pelo mesmo caminho, ou da vergonha do BPN, ou outras obras, outras instituições inventadas à pressa, outros projectos, ou os concursos “públicos”, de resultados sempre tão previsíveis, mas dos quais não podemos desconfiar porque isso seria colocar em causa tão grandes e altas “honorabilidades”, mais os processos do género “Face Oculta” ou Freeport: pois, já estávamos à espera, isto é sempre assim. Melhor seria se as “políticas necessárias de austeridade em nome da emergência nacional” avançassem, mas num silêncio de pudor. Sem grandes anúncios nem grandes justificações, que só deveriam envergonhar e embaraçar quem nos pede compreensão. Uma coisa é não haver remédio, outra é este insulto absurdo e continuado ao nosso bolso e às nossas consciências. Que houvesse alguém com coragem política, pessoal e moral para nos dizer frontalmente que é, e será sempre mais fácil tirar a quem não tem maneira de reagir, do que arrumar primeiro a casa do Estado, e só depois, feitas muito bem as contas, verificar se seria mesmo preciso ir tão longe nos sacrifícios pedidos a quem se limita a trabalhar honestamente, tenta que nada falte aos filhos, sonhou um dia poupar um pouco para não passar demasiadas agruras na velhice, e que nada sabe, senhores, nada, de como desviar fortunas por baixo da mesa dos impostos, não faz ideia do que é uma fundação, não sabe para que servem centenas de assessorias, gabinetes de comunicação, ou comissões instaladoras, grupos de trabalho para preparar uma reflexão futura que sirva de plataforma embrionária que visa a criação de uma subcomissão que por sua vez dará lugar a uma primeira comissão de estudos e projectos que, um dia mais lá à frente, será inspeccionada pelo Tribunal de Contas, que vai descobrir que se gastou 670 vezes acima do previsto. Nesse dia, a comissão de estudo instaladora de projectos talvez se demita, mostrando a cara amuada dos injustiçados, que não admitem suspeitas sobre a sua honorabilidade.
Carta Aberta
Não me lembro de obra pública que apresente contas limpas, dinheiros contadinhos, prazos e custos como constava do papel original