Antes da Cimeira da Nato, as autoridades de segurança confortaram-nos. Não havia motivo para preocupações, as forças estavam preparadas para o que desse e viesse. Não haveria por cá distúrbios de rua, mascarados a apedrejar lojas de prestígio (símbolos do capitalismo). E a chuva de chefes de Estado e suas delegações poderiam passar nas principais artérias, tranquilas. Os agentes estavam preparados e sabiam a lição, e, fundamentalmente, estaríamos munidos de dois carros blindados que são o máximo: um verdadeiro topo de gama da segurança, que só não param bombas atómicas, de resto reduzem qualquer ataque a umas inofensivas cócegas.
Durante semanas andaram jornalistas a procurar saber o dia de chegada de tais monstros seguros, na ânsia de os filmarem para mostrar ao povo. Durante semanas a anunciada chegada foi sendo adiada, e adiada. Problemas burocráticos, dificuldades de alfândegas, o costume. Mas que não nos preocupássemos que eles estariam cá a tempo da Cimeira, afinal a sua razão de virem. Mas veio a Cimeira e não vieram os blindados. Os jornalistas, esses chatos, quiseram saber o que tinha acontecido, e se não seria grave começar a Cimeira sem os dois bastiões da segurança, tão amplamente publicitados. A polícia começou por deixar de atender telefones. A Cimeira passou, felizmente sem incidentes, e lá veio uma tímida explicação: os blindados não chegaram, mas não nos preocupemos, porque também não era suposto serem o grande garante de segurança da Cimeira. É curioso isto ter sido dito com o enorme à-vontade que caracteriza hoje tantas declarações "oficiais". As mesmas que nos garantiram que os blindados chegariam a tempo da Cimeira, até porque era por causa da Cimeira que faziam falta, dizem-nos depois que afinal não vieram, mas também não havia prazo definido para chegarem. Já tínhamos aprendido, na política e no futebol, que o que hoje é verdade absoluta amanhã é mentira descontraída, mas esta é de mais. Mas tudo bem. Terminada pois a Cimeira, e não havendo no calendário nada que se assemelhe a tão grande e delicada concentração de líderes mundiais, apetece perguntar para que servirão, agora, os famosos blindados de filme de guerra. Frustrados com a impossibilidade de mostrar e operar o brinquedo na única ocasião em que parecia justificar-se, talvez os vejamos agora (se entretanto chegarem) a vigiar concentrações de aposentados que lamentam cortes nas reformas, ou desgarradas e infantis manifestações de adolescentes, aos gritinhos pelas ruas, aquelas manifs em que dois ou três (aspirantes a políticos que controlam a associação estudantil) sabem porque a convocaram, e as dezenas que seguem atrás estão lá pela festa, para faltar à aulas, ou conseguir um engate na confusão. Tenho um conselho, idosos e jovens excitados do meu país: controlai-vos, ou os blindados dão-vos nas orelhas.
2- Aliás, que falta fizeram os blindados naquela manhã nos Restauradores, quando o perigo espreitou o bem-estar dos lisboetas. Eram dezenas, que eu contei-os bem. Com os seus olhares fulminantes, e a sua organização quase militar, obedeceram ao implacável toque de chamada e, num ápice, sem que polícias ou transeuntes tivessem tempo de reagir, atiraram-se para o chão. Mas o terror não fica por aqui. Ali permaneceram, indiferentes ao frio da calçada ou ao desconforto das posições, para nos esfregarem na cara uma coisa que esquecemos tantas vezes: os mortos não se mexem. Caramba, se há coisa que abana a gente é uma estalada deste calibre na nossa moral instituída. Era, segundo um organizador (que ainda não se tinha atirado para o chão) um grito de revolta para lembrar as vítimas da Nato. Nada contra. O que não falta hoje são happenings a pensar na televisão, ao mesmo tempo que se acusa a televisão de ser medíocre e de só passar valores materiais do capitalismo.