E pronto, lá veio o triste desfecho previsível. Angélico não resistiu à violência das consequências do seu despiste. Paz à sua alma. Ninguém merece fim tão brutal e prematuro. Mas a verdade é que não faltam por aí rapazes da casa dos vinte que tiveram o mesmo destino e deixaram para trás famílias destroçadas. É perfeitamente normal (sem qualquer ironia) que seja preciso morrer alguém mais conhecido para que um país inteiro desate, mais uma vez, a reflectir sobre os temas: a morte prematura, a dor dos pais, o “preço” da fama, os perigos dos excessos, sobretudo na estrada, diferenças entre coma e morte cerebral, e, desta vez, até se falou de seguros de carros. A comunicação social, sobretudo em tempo de secura de outras grandes notícias, adora um bom “dossier”. Agarra logo um acontecimento que possa desdobrar-se em centenas de outros ângulos de abordagem. Ora, um dos pontos que nunca falha é a chamada “maldição da fama”. A comunicação social delira com isto. É certo que há milhões de pessoas que morrem com overdose, que se estampam na auto-estrada, que se suicidam… e que não eram famosos, nem passaram a ser por causa disso. Mas isso não interessa: quando vem mais um caso bombástico, logo vem a explicação de um qualquer psicólogo de serviço, sobre os famosos que querem “viver nos limites”, sempre ávidos de experimentação, que se julgam imortais. E há sempre, por mais que se queira disfarçar, uma pontinha de inveja ressabiada na forma como se mostra ao povo que aqueles que se julgam os maiores também vão desta para melhor. Um espantoso e recorrente exemplo desta mentalidade, com muito menor peso mas igual teor de vinagre, são aquelas fotos que as revistas ampliam: a estrela apanhada a sair do carro, ou a cruzar a perna no restaurante, e a objectiva consegue apanhar-lhe (horror) uma notória casca de laranja na pernoca. Título a vermelho: ela também tem celulite. Este “também” significa que a revista sabe a quantidade de ressabiadas e infelizes que a lêem. Este “também” é uma espécie de manguito à estrela que se diz adorar: toma lá, que é para aprenderes, julgas-te muito melhor do que nós, muito mais rica e gira, e afinal também tens a danada celulite. Toma, toma, toma, e milhares de adolescentes borbulhentas e anafadas de mau feitio sentem-se vingadas. É um facto, mil vezes comprovado, que os fãs ferrenhos têm um feitio patológico-delirante com os objectos da sua suposta adoração. A começar pela sua autoproclamada condição de “fã”, a crescer nos posters com declarações de amor, nas tatuagens, nos choros histéricos. Mas foi um grande fã, não nos esqueçamos, que atirou sobre John Lennon. E recordar este nome leva–me a outra pergunta: lidos alguns dos esperados artigos e reportagens sobre as “vertigens da fama”, dos ídolos que arriscaram demasiado, que tiveram tudo demasiado cedo e escolheram “viver no limite”… compreendo que ao lado de Angélico (excesso de velocidade) se fale de James Dean (o mesmo), ainda recentemente o criador de “Jackass” (mesmíssima vertigem), que se evoque Jim Hendrix, Elvis, Janis Joplin (todos encharcados em droga)… Mas… que fazem nesta lista de exemplos a princesa Diana e o próprio Lennon? A primeira, vítima de um acidente num carro que não conduzia e que se despistou ao tentar fugir a uma vergonhosa perseguição de paparazzi. Porque é ela comparada com os que não souberam lidar com os “malefícios da fama”? E Lennon, sobretudo Lennon, dos poucos ídolos que guardo ainda desde muito cedo? Cometeu excessos, sem dúvida, mas não consta que andasse a abrir nas auto-estradas ou a desafiar a morte numa sucessão vertiginosa de drogas. Teve, literalmente, a sua dose, e parou. Aos 40 anos, era um homem pacificado, cujo único “excesso” era a quantidade de vezes que proclamava o amor. Talvez delicodoce em demasia para uns, já a roçar o piroso para outros. Mas fosse a sua mensagem e atitude todo o “perigo” que os famosos decidem enfrentar. Mas não há nada a fazer: a comunicação social adora isto, repito. Por cada caso novo, desenterram-se outros do baú, porque as reportagens e artigos fazem-se com listas de outros “exemplos”. Era tempo de retirar Lennon e Diana de um estilo de vida “que já se estava mesmo a ver que ia acabar mal”, e deixá–los repousar em paz com a imagem mais justa: vítimas mortais de um mundo que dizia adorá-los.
Nota: Por vontade do autor, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico